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tia asperamente – onde o significado disto? de um mais além do que nós? fugitiva imagem<br />
de uma abdicação em grandeza – discutia agressivamente, aprovava enfim a ata.<br />
Sozinho. Às vezes com emendas – “a tempo se declara que”. E havia os ensaios. Todas<br />
as estantes armadas com a música de cada um, ele sentava-se no seu lugar. E ao comando<br />
do maestro invisível – ou dava ele a si mesmo, com a cabeça, o sinal de atacar, ensaiava<br />
uma hora. Às vezes para um passo mais difícil, ia além de uma hora. Mas nunca<br />
mais de hora e meia ou duas horas, se eram músicas desconhecidas. Nunca faltava a um<br />
ensaio, ele dizia que<br />
– Um instante de perfeição custa sempre meses de esforço, às vezes mais<br />
tinha a sua sabedoria. (RS, p. 172-173)<br />
E certo dia anunciou-se que a Filarmônica ia sair. “Era o último domingo do mês”.<br />
Então às três, era uma hora prefixa, postados à boca da rua principal, já havia gente, a-<br />
guardava, aguardamos também. Até que no extremo oposto, tio Ângelo apareceu à frente<br />
com o bombardino e atrás, formando coorte, uma caterva de rapazio. Sozinho. Fardado,<br />
carregando o bombardino. Como a música que lhe pertencia era de acompanhamento,<br />
música suplementar, tocava só as suas notas isoladas, às vezes não tocava, cabiamlhe<br />
só as pausas, ou tocava uma espécie de contraponto e a gente adivinhava o essencial.<br />
Como num mistério, era ele a parte visível do mistério. As pessoas riam, como é próprio<br />
da estupidez, os garotos faziam assuada, ele, grave, investido da sua transcendência.<br />
Tocava. Marcando a marcha, às vezes em silêncio, quando só tinha pausas, por vezes<br />
muitas, na pauta musical. [...]. E quando passou, viu-nos, olhou para nós, trazia o bombardino<br />
ao peito, todo brilhante dos metais. Olhou para nós, mas nem um toque na sua<br />
gravidade, ia no sítio das pausas. Depois, já de costas, ouvimo-lo bombardear o espaço<br />
com os roncos do instrumento. [...] ouvíamo-lo estrondear a aldeia inteira. Helena ria,<br />
toda a gente sorria [...]. Eu tinha uma vontade animal de chorar. (RS, p. 173-174).<br />
Há nesta espécie de fábula de sentido alegórico um sabor de absurdo e de tragicomédia.<br />
É ainda o tema do esvaziamento de um mundo “onde tudo vai morrendo”, homens,<br />
aldeias, cidades, culturas, artes, filosofias, religiões, Deus e os deuses todos... um mundo<br />
em que nada – nem mesmo o próprio universo – escapa ao inevitável desgaste do envelhecimento.<br />
Kafka ou Camus, ou ainda Fellini, parecem presidir a esta cena de alegoria trágica<br />
que só aos insensatos faz sorrir. Tio Ângelo é o último herói que resiste ao assalto do<br />
tempo e da velhice que está nele quando ele já decorreu. É o último resistente. O último<br />
músico da Filarmônica, tal como Jaime Faria era o derradeiro habitante da sua aldeia. “Onde<br />
o significado disto? de um mais além do que nós?”