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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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não reeditar. Tem expressão particularmente forte em Cântico final e Aparição e, não sendo<br />

irrelevante em Estrela polar, Alegria Breve e Nítido nulo, é retomado com mais vigor<br />

em Rápida, a sombra. O processo diegético deste romance inclui na sua estruturação três<br />

episódios quase fabulares e de nítido caráter alegórico. Dois deles diretamente relacionados<br />

com o tema. O primeiro, a partir da notícia da morte do tio Ângelo, figura popular da aldeia<br />

serrana das origens de Júlio Neves. Tio Ângelo, desde criança, fizera parte da filarmônica<br />

da aldeia. Quando menino, tocava “uma requinta, que era, digamos, um palmo de<br />

cornetim [...] ou um flautim? que é, digamos, um filho da flauta” (p. 169). Acompanhou<br />

por toda a vida – numa espécie de fusão – a vida da filarmônica, que se veio a chamar<br />

“Brados da Aurora” e que, de início, apenas uma charanga, nos seus tempos de “glória”<br />

veio a ser composta por trinta e cinco figuras. Tio Ângelo tocou praticamente todos os instrumentos<br />

da banda: “cornetim, trombone, feliscorne, contrabaixo, mesmo pancadaria e<br />

fixou-se depois no bombardino, mais de acordo, talvez, com a sua pulmadura” (p. 170).<br />

Mas algumas baixas se foram verificando no grupo de trinta e cinco músicos. Mortos uns,<br />

outros emigrados para outras terras. “Tio Ângelo ia de naipe em naipe dar uma ajuda, mudando<br />

mesmo de instrumento, consoante a importância dos trechos.” (ibid.). As baixas,<br />

cada vez maiores, obrigavam a reestruturar o conjunto. Mas o esvaziamento, os sinais de<br />

que a Filarmônica ia morrendo lentamente eram cada vez mais evidentes, “mesmo nas Assembléias<br />

Gerais dos Amigos da Filarmônica. Já nas cobranças, grandes falhas e crônicas.<br />

[...]. Onde as assembléias renhidas até às tantas da manhã?” (ibid., p. 171). Desejando “aprofundar<br />

as causas”, Tio Ângelo verificou que a morte da Filarmônica devia-se a mudanças<br />

de costumes, de cultura, de hábitos e de opções diversionais, à “partida de filarmônicos<br />

para outras terras, para a Capital, ou o estrangeiro”, à “diminuição do fabrico humano”, à<br />

“praga de rádios com a sua música estúpida”, à “redução dos arraiais”, à “doidice da bola<br />

ou da bicicleta” (ibid.).<br />

Em vinte anos havia só dez figuras. Nas Assembléias, às vezes só três – ele e dois outros<br />

da sua idade. Organizou então uma campanha fanática, com artigos nos jornais da<br />

vila, pregação do padre no púlpito, pequenos peditórios. Derretia o rendimento em fardas,<br />

instrumentos, ajudas de custo. Ia de porta em porta mendigar filarmônicos, contratava-os<br />

logo ao nascer. Em vão. Ao fim de trinta anos ele estava só. [...]. Convocava a<br />

Assembléia Geral, assinava a convocatória mas só para si mesmo – e vinha sozinho. Lia<br />

a ata que depois de lida e aprovada ia ser assinada nos termos legais, ele lia. Sozinho na<br />

sala, entre os troféus de outras eras, o trapo da bandeira corroído de traça. Depois discu-

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