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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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monte a monte, no mais secreto da aflição [...], ressoa aos confins da vida. Intensa. Profunda.<br />

Excessiva.” (RS, p. 24). Maria Alzira Seixo lembra com muita propriedade “certa conotação<br />

simbolista” desta flauta, “aqui (a pureza da expressão, a reminiscência de Camilo<br />

Pessanha, o isolamento glorificado).” 41 . E será sob o intenso poder de evocação que a música<br />

possui, a sua capacidade de estimular a lembrança, a reminiscência, a imaginação (que<br />

é outra forma de dizer o sonho) e que claramente se reconhece forte e recorrente por todo o<br />

Simbolismo – ou num romance fundamental, como a Recherche de Proust – que se vai dar<br />

todo o evocar do passado (e quantas vezes a sua reinvenção). Passado que se entrelaça com<br />

o presente e se projeta para o futuro e em que Júlio Neves mergulha, entre doses de uísque,<br />

mais ou menos entorpecido de calor e de desânimo, ouvindo repetidamente a melodia suave<br />

do “Amanhecer” (“música serena, nem triste nem alegre, nascida depois de toda a alegria<br />

e tristeza, do que ficou, depois da vibração e do sofrimento.” – p. 245) que se vai<br />

transformando num solo de flauta que ressoa e “balança na linha fina dos montes” (p. 76),<br />

“à ondulação longínqua de horizontes” (p. 105), que “ecoa no horizonte da vida” (p. 154),<br />

“uma flauta branca, pura / ouço-a. De horizonte a horizonte, voz do meu apaziguamento, ó<br />

voz terna como uma face. Ergue-se à altura do meu sofrimento, ondeia ao espaço da minha<br />

solidão. [...] – uma flauta ecoa na vertigem de mim.” (p. 200) 42 .<br />

O tema da música e a sua transcendência, o seu poder de transfiguração, de apaziguamento,<br />

de encantamento e maravilha, é praticamente de sempre, na obra romanesca de<br />

Vergílio Ferreira. Remonta aos seus primeiros livros, mesmo àqueles que o autor decidiu<br />

41 SEIXO, Maria Alzira. Rápida, a sombra. In: _____ . Discursos do texto. Amadora: Bertrand, 1977, p. 185,<br />

[resenha]. A referência a Camilo Pessanha feita pela ensaísta, prende-se ao poema “Ao longe os barcos de<br />

flores”, que inicia e conclui com o verso “Só, incessante, um som de flauta chora” (Cf. Camilo Pessanha.<br />

Clepsidra e outros poemas. 6. ed. Lisboa: Ática, 1983, p. 71). A “conotação simbolista” da flauta, de que<br />

fala Alzira Seixo, intensifica-se na evidente intertextualidade e na sinestesia baudelairianas que se observam<br />

no texto de V. F.: o som da flauta que passa “entre a floresta de cordas” lembra fatalmente, do soneto<br />

“Correspondências”, de Baudelaire, a imagem do homem que “passa através de florestas de símbolos”; a<br />

suavidade pacificadora da flauta de RS, e o seu poder de evocação, que emerge da sua “voz” branca que<br />

ressoa “de monte a monte” até aos “confins da vida”, têm equivalência nos “oboés de doçura” e nos “verdejantes<br />

ermos” do soneto de Baudelaire. (Cf. “Correspondências”. In: BAU<strong>DE</strong>LAIRE, Charles. As flores<br />

do mal. Trad. Jamil Almansur Haddad. 2. ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964, p. 92).<br />

42 A propósito do poder de evocação da música (e, neste romance, particularmente da que Júlio Neves ouve<br />

no gira-discos do seu gabinete) e do traço proustiano desse fluir da memória ou da reminiscência, vale a<br />

pena citar esta passagem:<br />

O disco. Ouço-o e a parte de mim que escuta está só na memória dos sons. É a hora em que na música<br />

há uma dança de roda e as crianças de bibe – devem estar no recreio da escola. Sou triste na alegria<br />

delas porque tudo nelas é longe. (RS, p. 149).<br />

A música ouvida, que é, provavelmente, a “Dança de Anitra”, do poema dramático Peer Gynt, suíte nº 1,<br />

op. 46, de Grieg, acorda na memória de Júlio Neves uma cena da infância em que ele se revê com outras<br />

crianças em brincadeiras na escola.

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