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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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A fusão que na subjetividade do protagonista se observa entre Helena e Hélia (com<br />

a clara afirmação desta, em detrimento da primeira, no horizonte de interesses amorosos de<br />

Júlio) estende-se a outros aspectos do romance, a determinadas categorias ficcionais, sobretudo<br />

ao binômio tempo-espaço. É preciso ter em conta que o romance representa a rememoração<br />

de fatos e da sua relação com o tempo e o lugar onde aconteceram, portanto,<br />

um romance que se “constrói” sob o signo de uma memória emocionada, praticamente<br />

agredida pela secura do bilhete comunicador do abandono do escritor: “Vou-me embora”.<br />

A memória que flui, impulsionada de emoção, não realiza um inventário de fatos passados<br />

na sua relação com o tempo e o espaço que foram os da sua ocorrência. Eles acorrem,<br />

mesmo involuntariamente, ao fluxo rememorativo, e em estado caótico, porque a memória<br />

não está ocupada em organizar-lhes a seqüência cronológica. Daí, desse processo de representação<br />

literária, resultam as ambigüidades da narrativa, a quebra do pacto romanesco<br />

evidenciando a ficcionalidade do texto, as incertezas e hesitações do narrador, a fusão de<br />

diferentes tempos e espaços no avançar e recuar da memória que narra fragmentando a<br />

realidade, transgredindo-a, reinventando-a (até com a consciência disso, e, a propósito,<br />

lembrando por vezes, o protagonista – e até com freqüência –, a sua condição de escritor)<br />

rompendo a linearidade da ação que resulta pulverizada, praticamente anulada. Rápida, a<br />

sombra é um romance de discurso, um romance sem ação que muito se aproxima, já, do<br />

que em Vergílio Ferreira viria a ser o romance da memória absoluta.<br />

Nessa memória que flui em momentâneo e voluntário estado de enclausuramento<br />

de quem rememora 40 – Júlio Neves está sozinho no apartamento que “sufoca de calor” e<br />

recolhido ao espaço do seu gabinete, sentado em frente à “muralha de livros” da biblioteca<br />

que é percorrida, seção a seção, por um raio de sol transformado em marcador do tempo<br />

que decorre ao longo da tarde... – nessa memória que flui entrelaçam-se tempos e lugares,<br />

situações e pessoas, temas e obsessões, recorrências, estratégias, motivos e recursos constantes<br />

à própria obra vergiliana. Entre eles, e como elemento de moldura – mas também de<br />

importante leitmotiv –, o da música, inicialmente identificada como a melodia “Amanhecer”,<br />

mas depois cada vez mais abstratamente referida como um som de flauta que “passa<br />

entre a floresta de cordas”, ressoa solitária, “pelos montes, pelos vales, responde em amargura<br />

à alegria que vai ouvindo [...]. Voz da noite no claro amanhecer”. Flauta que toca “de<br />

40 Já se sabe que a situação de enclausuramento de personagens-protagonistas é uma constante nos romances<br />

de V. F. Abordei o assunto no início deste capítulo. Também em Rápida, a sombra ela está presente, mas,<br />

como em outras narrativas em que pode ser anotada, o corpo permanece na exigüidade de um espaço físico,<br />

mas o pensamento, a emoção, a imaginação e a memória não conhecem limites, quer de tempo quer de<br />

espaço.<br />

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