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A rememoração do passado de Júlio Neves é pretexto para trazer à narrativa todos<br />
os grandes temas e motivos do universo diegético de Vergílio Ferreira. A começar pela<br />
música, as discussões sobre Arte, o envelhecer, a vida, a morte, o filho (aqui especificamente<br />
uma filha, já adulta e mãe do menino Pedrinho), o tempo, o amor, a plenitude erótica...<br />
Impactado com a notícia do abandono, ele observa a incidência do sol sobre uma estante<br />
da sua biblioteca. É escritor. “Bate o sol numa estante, um raio limpo. Filtra-se pelo<br />
estore, suponho que, toca ao alto a primeira prateleira, o primeiro livro à esquerda, “História<br />
da música” (p. 11), e põe um disco no aparelho de som. A música que ouve chama-se<br />
“Amanhecer” e o aparelho tem um dispositivo que repete qualquer música indefinidamente,<br />
e ele vai ouvi-la até à exaustão, até lhe “entrar no sangue” (id.). “Amanhecer”. “É um<br />
título de ironia, penso, as manhãs trazem uma voz de triunfo, mesmo para os que não vencerem.<br />
É um amanhecer calmo. Este. Sem vitórias nem derrotas para depois. Nem triste<br />
nem alegre, música apenas, com a evidência da vida no meio [...] (ibid.) 39 .<br />
A “evidência da vida” é o que também fortemente, quase brutalmente, lhe traz a notícia<br />
de que a mulher o abandonou. O “vou-me embora” do bilhete e a contemplação do<br />
retrato de Helena incrustado numa das estantes da biblioteca trazem de volta a Júlio Neves<br />
a lembrança da sua mulher em plena juventude. Ele a vê na memória, radiante de força e<br />
de luz, numa praia do Sul, saindo das águas como a Vênus de Boticcelli:<br />
no instante exato da perfeição, da força inteira da beleza. Da vida. Túmida branca solar.<br />
Mon amour. A onda referve, enrodilhada de espuma, tu ergues na passada a coxa rutilante.<br />
E o teu riso no ar, no esplendor da manhã. Fito-te agora como se pela primeira<br />
vez. A touca na mão e os cabelos desprendidos – como a alegria é difícil. O breve triângulo<br />
do calção um pouco descaído, a tira estreita dos seios. E o giro rápido de todo o teu<br />
corpo nu. Fresca e firme, nervosa linha animal. O busto pequeno, fechando para a cintura,<br />
frágil e elástica. E as ancas. Densas, pesando para a terra. (RS, p. 13).<br />
É um quadro mediterrânico e pagão, mostrando em pujança a beleza e a força de<br />
uma mulher loura saída das águas numa praia do Sul, emoldurada de sol, fundindo-se à luz<br />
do sol no louro dos seus cabelos, “Saída das ondas como quando havia deuses. E o sol.<br />
Cai-te a prumo nos cabelos claros, acende a festa do teu corpo. Saída das ondas – saída dos<br />
livros que em muralha de cima abaixo, de um lado ao outro da sala.” (p. 15). A memória e<br />
39 No contexto do romance, “Amanhecer” (provavelmente a primeira parte de Peer Gynt, suíte nº 1, op. 46,<br />
de Edvard Grieg) é realmente um título irônico, porque colocado em confronto com o tema fundamental<br />
do livro, que é o anoitecer da vida.