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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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Os romances de Vergílio Ferreira – já em algum lugar o disse – têm sempre, como<br />

elemento deflagrador da ação uma situação-limite impactante para o protagonista. A morte<br />

do pai ou dos pais (Mudança, Cântico final, Aparição), a morte da mãe (Estrela polar), a<br />

morte da mulher (Alegria breve). A proximidade da própria morte (Nítido nulo e também<br />

Cântico final). É nessas circunstâncias, sobretudo a de Nítido nulo, que se revê “a vida<br />

toda” (NN, p. 64). Em Rápida, a sombra a situação-limite que desencadeia a ação protagonizada<br />

por Júlio Neves é a do seu abandono pela mulher, comunicado pelo bilhete lacônico:<br />

“Vou-me embora”. A partir do achado do bilhete e da conseqüente prostração do<br />

homem que o encontrou, confirmando o seu receio ao entrar na casa quente e vazia, toda a<br />

sua vida passada se vai projetando na memória, num processo ainda sugestivo de uma narração<br />

cinematográfica constituída por um longo flash-back em que a rememoração é aqui e<br />

ali interrompida brevemente para uma ligeira anotação sem importância, como o avançar<br />

das horas ao longo de uma tarde de calor ou o barulho do trânsito na rua 37 . É a partir do<br />

instante em que se confirma o seu abandono que o homem constata que “entardece devagar”<br />

(p. 11). Esse entardecer não é apenas o do avançar das horas em direção à noite, é<br />

também o do avançar da vida em direção ao fim. É metáfora da concepção do tempo vital<br />

em Vergílio Ferreira, que se vem forjando pelo menos desde Alegria breve 38 .<br />

37 Não há dúvida que o cinema é uma presença constante na obra de V. F., quer como recurso de técnica<br />

narrativa – como em NN –, quer como referência cultural mais ou menos freqüente, quer ainda como fonte<br />

de “inspiração” quase intertextual para a composição de determinadas imagens ou episódios. Em Rápida, a<br />

sombra, o recolhimento de Júlio Neves ao escritório que vai mergulhando em penumbra à medida que a<br />

tarde avança para a noite e de onde ele revê, em flash-back, um passado real e imaginário que se funde<br />

com o presente que se alterna com um futuro incerto e irreal promovendo a mais absoluta quebra da linearidade<br />

cronológica e racionalidade espacial tem muito de “linguagem” cinematográfica. O episódio do tio<br />

Ângelo, de que se falará mais adiante, traz uma carga de um certo patético e amargo surrealismo felliniano.<br />

No vigésimo capítulo há a descrição de um filme a que Júlio Neves vai assistir com Helena (sendo entretanto<br />

em Hélia que pensa) cujo núcleo temático é um pacto de perene juventude firmado por um casal de<br />

jovens que juram um ao outro “ser eternos”. O pacto desfaz-se ao aparecimento do primeiro cabelo branco<br />

na mulher. “Deus partia, o homem ia ficar só” (p. 212). E pela mesma taça os dois bebem o veneno que os<br />

retira da efemeridade da vida. O filme chama-se Eternidade e tem, eventualmente, alguma coisa de bergmaniano.<br />

Referir Bergman junto a V. F. não é mera casualidade ou algo aleatório, porque os universos narrativos<br />

de um e de outro têm algo ou muito em comum e o escritor algumas vezes se refere ao cineasta nos<br />

seus diários, até com alguma análise do seu cinema (Cf. CC1, p. 175) e em entrevistas (Cf. UEA, p. 133 e<br />

363), tal como algumas vezes se refere, também, a Visconti e a Fellini. Rápida, a sombra é um romance<br />

em que à música e aos constantes silêncios se misturam gritos e sussurros, o que pode não ser meramente<br />

casual.<br />

38 “A tarde escurece, noite vem aí”, diz Jaime Faria (AB, p. 272); “Parece-me definitivamente o outono – será<br />

do entardecer?”, diz Jorge Andrade (NN, p. 101), ou ainda: “Vi o esplendor do homem ao meio-dia solar.<br />

[...]. Mas é duro haver tarde. Pior que a noite, quando a doença já aí está, e não é mais pressentida.” (ibid.,<br />

p. 296). A concepção do tempo em V. F. e a sua metaforização, passa por diferentes estágios. O primeiro é<br />

o das estações da vida (infância, adolescência, juventude, maturidade e velhice); o segundo, o das estações<br />

do ano (primavera, verão, outono e inverno); o terceiro e último o das estações do dia (manhã, tarde e noite),<br />

todos com evidentes conotações simbólicas e existenciais.

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