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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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199<br />

Tenho de explicar a morte da tia Matilde com alguma doença, mas não é fácil. Tem de<br />

ser uma doença que caiba num capítulo. Um cancro, por exemplo, não dá muito jeito.<br />

Ela de resto fora acumulando várias hipóteses de doenças plausíveis para morrer. Tinha<br />

digestões difíceis com dores de cabeça que viriam talvez do fígado. O fígado, por e-<br />

xemplo, é uma boa hipótese. Tinha de há muitos anos uma “dor” com localizações variáveis.<br />

Tinha um coração com os seus amuos. Suponho que é disso que irá morrer. (Ibid.,<br />

p. 259).<br />

O Lucinho morreu. Mas não agora. Hei-de primeiro morrer o pai daqui a pouco, [...] (p.<br />

61).<br />

O miúdo tratava-me também por “doutor”. E dizia:<br />

– O Cô.<br />

Aprendeu a tratar-me assim quando arrumava as coisas do mundo. Depois morreu<br />

– mas não agora ainda. É necessário que a amargura cresça, e como é possível com tanta<br />

luz? Mar nítido. E o sol. Como é possível a dor e o erro e a morte, na totalidade desta<br />

hora? É necessário que a amargura cresça, [...]. (p. 68).<br />

Preciso de relembrar convenientemente, porque este lance apanha-me todo e não posso<br />

deixar nada de mim de fora. Talvez uma golada? A sede. Tenho uma teoria da sede, vou<br />

ver se a explico num dos capítulos que faltam – quantos capítulos me faltam? Um pouco<br />

já farto disto, [...]. (p. 267).<br />

[...] o sol desce já com certa urgência, e tenho ainda vários capítulos a cumprir (p. 275).<br />

Estas “falas” de Jorge deixam claro que o que se está a ler é um romance: “morrer”<br />

o Lúcio, mas antes o pai dele; “morrer” a tia, mas inventar para isso uma “boa” doença;<br />

contar alguma coisa, mas só daqui a uns tantos capítulos (o que também é um tempo, não<br />

deixando de ser um “espaço”), e a certa altura – quantos ainda faltarão? – um certo cansaço,<br />

“um pouco já farto disto” e ter “ainda vários capítulos a cumprir”. E é então que um<br />

certo paradoxo se revela: organizará Jorge a sua “fala” em capítulos? É evidente que há<br />

uma força concatenadora que estabelece uma ordem para a organização do aparente caos, e<br />

essa força ordenadora é a entidade autoral Vergílio Ferreira que aqui se funde à entidade<br />

ficcional Jorge Andrade. Rosa Maria Goulart percebeu muito bem a sutileza do recurso<br />

neste e em outros romances do escritor:

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