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de é o que está ai diante dos olhos; mas o que está diante dos olhos tem já sempre um<br />
dono, se for coisa que preste. A culpa é sua que tem a mania de que a verdade vale por<br />
si; [...]. Ser-se homem é não ter sistema simpático e você tem. Ser-se homem é não ter<br />
infância nem intestinos relaxados e você ignora-o. Ser homem é não ser humano – de<br />
que é que eu estava falando, Vergílio Ferreira? (Ibid., p. 277-278).<br />
É necessário invocar o princípio da ironia, segundo o entendimento de Northrop<br />
Frye 32 , para a boa compreensão deste passo ficcional capaz de causar estranhamento mais<br />
ou menos impactante em leitores convencionais de romances convencionais. É que neste<br />
romance ruíram as convenções romanescas para dar ensejo a uma espécie de desmistificação<br />
do gênero. Essa desmistificação começa com o autor que se transforma em personagem<br />
de si mesmo (ou personagem da sua personagem), invocado e interpelado por Jorge<br />
Andrade e em diálogo com ele. Um Jorge Andrade que, desenvolvendo a sua narrativa pela<br />
memória que não transforma em escrita, realiza entretanto, como num jogo de prestidigitação,<br />
uma espécie de fusão com a entidade autoral para estruturar um “texto” que em sua<br />
realidade material e nas mãos do leitor vem a ser o romance Nítido nulo, em que é preciso<br />
criar personagens, fazê-las aparecer e desaparecer, dar-lhes vida e condená-las a morrer. E<br />
isso em momentos adequados, de maneiras adequadas e em capítulos certos, de modo que<br />
não reste dúvida, para quem lê, que o que se está a ler é um romance. Um romance que<br />
declara a sua natureza ficcional, e não uma ficção que tenta ocultar a sua natureza para<br />
infundir uma ilusão de verdade. Assim, com bastante freqüência, encontram-se no romance<br />
referenciais destinados a manifestar a ficcionalidade da obra. Como nestas passagens:<br />
[...] tia Matilde não veio. O terror da morte? está para morrer em breve também, devo<br />
morrê-la daqui a alguns capítulos. (NN, p. 220).<br />
32 Northrop Frye conceitua a ironia como “o mỹthos da literatura que se ocupa primariamente com um plano<br />
‘realístico’ da experiência, tomando habitualmente a forma de uma paródia ou análoga, que contrasta com<br />
a estória romanesca. Tal ironia pode ser trágica ou cômica em sua ênfase principal; quando cômica, é normalmente<br />
idêntica ao sentido usual da sátira.” (Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1973, p. 360-361).<br />
O contraste entre este passo, mais ou menos risível, mais ou menos sarcástico, e a essência trágica do romance<br />
de Vergílio Ferreira é evidente. O autor, que a si mesmo transforma em personagem da sua própria<br />
ficção, coloca-se, enquanto personagem, em situação vexatória, acusado, pelo personagem-narrador, de<br />
“retórico”, “sentimental”, “fraco”, “reacionário” e deploravelmente nervoso... Só pela ironia se entende a<br />
situação de acuado em que Vergílio Ferreira autor de Nítido nulo coloca Vergílio Ferreira, personagem do<br />
romance. E o contraste é evidente, entre o sarcástico e o trágico, mesmo noutras situações, em que Jorge<br />
procura minimizar a tragédia pela via do sarcasmo, do anedótico e do irônico, às vezes até com alguma violência<br />
ou crueza de linguagem.