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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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196<br />

cional instituindo um tempo metafísico 30 que não é possível mensurar pelo calendário, nem<br />

pelo relógio, ou pelas estações do ano ou por quaisquer pontos de referência, porque todo<br />

o tempo, desde o agora ao mais remoto passado, se funde em simultaneidade possível de<br />

evocar em turbilhão. É esse o “tempo de Jorge” ou por ele sentido e talvez impossível de<br />

descrever satisfatoriamente: um tempo presentificado no Agora do tempo narrativo, em<br />

que coexistem a memória de um passado recente, que é o da revolução, a de um passado<br />

remoto, que é o da infância e da juventude do protagonista, a expectação de um futuro sem<br />

futuro – porque é a morte que lá está – e em que o passado morrerá na morte de Jorge,<br />

quando ele for executado. Tudo isto se funde numa simultaneidade que é o fluir da memória<br />

narrativa que vem da corrente de consciência em que se transforma a “fala”/“observação”/“memória”/“narrativa”/“solilóquio”...<br />

de Jorge. O processo de fragmentação/diluição<br />

do tempo em Vergílio Ferreira alcança aqui, neste romance que é um dos<br />

marcos fundamentais da sua trajetória criadora, um elevado patamar de ousadia e realização<br />

que vem culminar o caminho percorrido desde Aparição e desde algumas reflexões<br />

contidas em Carta ao futuro 31 .<br />

Ora, é claro que o tempo, enquanto categoria da narrativa, cronológico ou não, linear<br />

ou não, enquadrável ou não em qualquer das classificações que a teoria literária elaborou<br />

para ele, é também uma convenção romanesca que este ou aquele romance preserva, tal<br />

como este ou aquele romance transgride. No caso de Vergílio Ferreira o tempo romanesco<br />

transgride radicalmente a convenção do tempo cronológico (sobretudo em Nítido nulo e<br />

nos dois romances que lhe são imediatamente anteriores), mas não é esta a mais radical das<br />

Estendendo a sua análise até Nítido nulo e romances posteriores, diz a ensaísta que estes<br />

“são essencialmente romances do sem tempo, da não história – isto é, de uma história em estilhaços<br />

que só é história pela reconstituição dos episódios avulsos que uma escrita dominada pelo pulsar de<br />

recordações desordenadas fragmentou.” (Ibid. p. 152). E mais adiante: “Nítido nulo questiona o<br />

princípio da causalidade – indispensável num romance de intriga – e submete igualmente ao ritmo<br />

da memória a narração dos eventos. Daí que o ‘fio’ da narrativa seja retomado vezes sem conta, como<br />

a seguinte passagem pode testemunhar: ‘É claro que, quando lembro, o passado vem todo ao<br />

mesmo tempo ou desencontrado mas só por lembrá-lo e não por ter sido. Creio que vou perdendo o<br />

fio à meada, é melhor parar’.” (Ibid., p. 153).<br />

31 Pronunciando-se o próprio V. F. sobre o processo de “pulverização” ou diluição do tempo e a sua aplicação<br />

ao romance, assim escreveu o romancista no seu diário:<br />

Curioso é o equívoco de se supor que uma narrativa cronológica é mais difícil. Isso sim... Uma narrativa<br />

cronológica, na seqüência causa/efeito, dá um apoio muito mais seguro como na construção<br />

de uma casa. A gente põe uma pedra, depois outra que se lhe ajusta, até o edifício ficar pronto. Mas<br />

uma narrativa fragmentada é duplamente difícil. Porque tem de visar um conjunto como na seqüência<br />

cronológica e tem de selecionar e ordenar os elementos dispersos para que no fim se consiga a<br />

totalização. (CC3, p. 98 – anotação de 15.8.1980).

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