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cional instituindo um tempo metafísico 30 que não é possível mensurar pelo calendário, nem<br />
pelo relógio, ou pelas estações do ano ou por quaisquer pontos de referência, porque todo<br />
o tempo, desde o agora ao mais remoto passado, se funde em simultaneidade possível de<br />
evocar em turbilhão. É esse o “tempo de Jorge” ou por ele sentido e talvez impossível de<br />
descrever satisfatoriamente: um tempo presentificado no Agora do tempo narrativo, em<br />
que coexistem a memória de um passado recente, que é o da revolução, a de um passado<br />
remoto, que é o da infância e da juventude do protagonista, a expectação de um futuro sem<br />
futuro – porque é a morte que lá está – e em que o passado morrerá na morte de Jorge,<br />
quando ele for executado. Tudo isto se funde numa simultaneidade que é o fluir da memória<br />
narrativa que vem da corrente de consciência em que se transforma a “fala”/“observação”/“memória”/“narrativa”/“solilóquio”...<br />
de Jorge. O processo de fragmentação/diluição<br />
do tempo em Vergílio Ferreira alcança aqui, neste romance que é um dos<br />
marcos fundamentais da sua trajetória criadora, um elevado patamar de ousadia e realização<br />
que vem culminar o caminho percorrido desde Aparição e desde algumas reflexões<br />
contidas em Carta ao futuro 31 .<br />
Ora, é claro que o tempo, enquanto categoria da narrativa, cronológico ou não, linear<br />
ou não, enquadrável ou não em qualquer das classificações que a teoria literária elaborou<br />
para ele, é também uma convenção romanesca que este ou aquele romance preserva, tal<br />
como este ou aquele romance transgride. No caso de Vergílio Ferreira o tempo romanesco<br />
transgride radicalmente a convenção do tempo cronológico (sobretudo em Nítido nulo e<br />
nos dois romances que lhe são imediatamente anteriores), mas não é esta a mais radical das<br />
Estendendo a sua análise até Nítido nulo e romances posteriores, diz a ensaísta que estes<br />
“são essencialmente romances do sem tempo, da não história – isto é, de uma história em estilhaços<br />
que só é história pela reconstituição dos episódios avulsos que uma escrita dominada pelo pulsar de<br />
recordações desordenadas fragmentou.” (Ibid. p. 152). E mais adiante: “Nítido nulo questiona o<br />
princípio da causalidade – indispensável num romance de intriga – e submete igualmente ao ritmo<br />
da memória a narração dos eventos. Daí que o ‘fio’ da narrativa seja retomado vezes sem conta, como<br />
a seguinte passagem pode testemunhar: ‘É claro que, quando lembro, o passado vem todo ao<br />
mesmo tempo ou desencontrado mas só por lembrá-lo e não por ter sido. Creio que vou perdendo o<br />
fio à meada, é melhor parar’.” (Ibid., p. 153).<br />
31 Pronunciando-se o próprio V. F. sobre o processo de “pulverização” ou diluição do tempo e a sua aplicação<br />
ao romance, assim escreveu o romancista no seu diário:<br />
Curioso é o equívoco de se supor que uma narrativa cronológica é mais difícil. Isso sim... Uma narrativa<br />
cronológica, na seqüência causa/efeito, dá um apoio muito mais seguro como na construção<br />
de uma casa. A gente põe uma pedra, depois outra que se lhe ajusta, até o edifício ficar pronto. Mas<br />
uma narrativa fragmentada é duplamente difícil. Porque tem de visar um conjunto como na seqüência<br />
cronológica e tem de selecionar e ordenar os elementos dispersos para que no fim se consiga a<br />
totalização. (CC3, p. 98 – anotação de 15.8.1980).