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Voltarei a tratar das transgressões deste romance às convenções romanescas, mas só<br />
depois de chamar a atenção para a mudança de cenário que ele institui diferenciando-o dos<br />
anteriores. Não exatamente uma radical inovação espacial, uma vez que do espaço, em<br />
Nítido nulo, faz parte a cela da cadeia onde Jorge está preso e que, como espaço prisional,<br />
já é conhecido desde Estrela polar. Na verdade a inovação é porventura muito mais cenográfica<br />
(para lembrar ainda o parentesco deste romance com o cinema) do que propriamente<br />
espacial. Do espaço que ocupa e em que está retido (enclausurado) Jorge vê um cenário<br />
diurno de praia, de mar, de sol intenso de verão, casas de veraneio fechadas, estacas de<br />
toldos retirados, um ou outro barco que passa, pescadores, o cão, a falésia... E tudo isto,<br />
nitidamente visto, substitui a montanha, que era o espaço obsessivo e mítico dos romances<br />
anteriores, desde Mudança (e dos livros de antes deste) até Alegria breve. A aldeia com a<br />
sua paisagem e os seus loucos – a casa da infância com a tia Matilde e a evocação dos pais<br />
de Jorge sempre lembrados de partida para a emigração, levados numa nuvem de poeira<br />
pela carroça do Beltra atrás da qual o menino corria até estar só, à beira da estrada, com o<br />
seu cansaço, a sua tristeza e a sua desistência – é apenas farrapo de uma memória remota<br />
que o sentimento do adulto “atualiza”, presentifica na voragem do tempo de vida que se<br />
esgota, na urgência de se rever num instante a vida toda... Esse “instante infinito com a<br />
eternidade no centro” (NN, p. 64). Essa presentificação, desta e de outras imagens da esgarçada<br />
memória de Jorge, manifesta-se naquela já referida espécie de delírio em que se<br />
misturam todos os tempos da sua vida e cuja representação romanesca, tendo antecedentes<br />
pelo menos desde Aparição, realiza uma completa “pulverização” da cronologia convenlixo<br />
camarário. [...]”. (Pensar. Venda Nova: Bertrand, 1992, frag. 149. Cf. também: Escrever. Lisboa: Bertrand,<br />
2001, frags. 167, 318 e 330).<br />
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Tomo de empréstimo esta expressão a Rosa Maria Goulart, que faz em Romance lírico: o percurso de<br />
Vergílio Ferreira, uma análise exemplar do tempo nos romances do escritor e que a utiliza como memória<br />
metafísica já a propósito do ensaio Carta ao futuro, estendendo-a depois aos romances, tendo Aparição<br />
como ponto de partida. Citando um trecho do ensaio em que Vergílio faz a distinção entre “memória fácil<br />
do homem” (recordação) e “a outra”, a “memória pura” (“que é apenas a vertigem das eras, eco de uma<br />
voz que transcende os limites do tempo, [...] uma pura vibração para os quatro cantos do mundo, uma pura<br />
expectativa de uma interrogação submersa”), diz Rosa Goulart que a memória pura<br />
dir-se-ia assim uma espécie de memória metafísica”, e que “a memória concebida desse modo nos<br />
ensaios é a que entra também na prática romanesca. E, obviamente, funcionando nestes moldes, é<br />
radicalmente abalada a estrutura temporal da narrativa, seja porque se cria um espaço delirante onde<br />
nada se avança no domínio factual, seja porque, sendo a memória pura ‘eco de uma voz que transcende<br />
os limites do tempo’, ela se liga à intemporalidade segundo a qual o texto lírico se estrutura.<br />
Para Alberto Soares, como para outros narradores/personagens de Vergílio, a memória não recupera<br />
propriamente os fatos, mas recria-os. Ou quase os ‘esquece’ sem que, no entanto o presente da escrita<br />
deles prescinda – se bem que deles se afaste às vezes para um tempo ainda mais antigo do que a-<br />
quele onde esses fatos se situaram. (GOULART, Rosa Maria. Op. cit., p. 139-140, itálicos da citação).