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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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195<br />

Voltarei a tratar das transgressões deste romance às convenções romanescas, mas só<br />

depois de chamar a atenção para a mudança de cenário que ele institui diferenciando-o dos<br />

anteriores. Não exatamente uma radical inovação espacial, uma vez que do espaço, em<br />

Nítido nulo, faz parte a cela da cadeia onde Jorge está preso e que, como espaço prisional,<br />

já é conhecido desde Estrela polar. Na verdade a inovação é porventura muito mais cenográfica<br />

(para lembrar ainda o parentesco deste romance com o cinema) do que propriamente<br />

espacial. Do espaço que ocupa e em que está retido (enclausurado) Jorge vê um cenário<br />

diurno de praia, de mar, de sol intenso de verão, casas de veraneio fechadas, estacas de<br />

toldos retirados, um ou outro barco que passa, pescadores, o cão, a falésia... E tudo isto,<br />

nitidamente visto, substitui a montanha, que era o espaço obsessivo e mítico dos romances<br />

anteriores, desde Mudança (e dos livros de antes deste) até Alegria breve. A aldeia com a<br />

sua paisagem e os seus loucos – a casa da infância com a tia Matilde e a evocação dos pais<br />

de Jorge sempre lembrados de partida para a emigração, levados numa nuvem de poeira<br />

pela carroça do Beltra atrás da qual o menino corria até estar só, à beira da estrada, com o<br />

seu cansaço, a sua tristeza e a sua desistência – é apenas farrapo de uma memória remota<br />

que o sentimento do adulto “atualiza”, presentifica na voragem do tempo de vida que se<br />

esgota, na urgência de se rever num instante a vida toda... Esse “instante infinito com a<br />

eternidade no centro” (NN, p. 64). Essa presentificação, desta e de outras imagens da esgarçada<br />

memória de Jorge, manifesta-se naquela já referida espécie de delírio em que se<br />

misturam todos os tempos da sua vida e cuja representação romanesca, tendo antecedentes<br />

pelo menos desde Aparição, realiza uma completa “pulverização” da cronologia convenlixo<br />

camarário. [...]”. (Pensar. Venda Nova: Bertrand, 1992, frag. 149. Cf. também: Escrever. Lisboa: Bertrand,<br />

2001, frags. 167, 318 e 330).<br />

30<br />

Tomo de empréstimo esta expressão a Rosa Maria Goulart, que faz em Romance lírico: o percurso de<br />

Vergílio Ferreira, uma análise exemplar do tempo nos romances do escritor e que a utiliza como memória<br />

metafísica já a propósito do ensaio Carta ao futuro, estendendo-a depois aos romances, tendo Aparição<br />

como ponto de partida. Citando um trecho do ensaio em que Vergílio faz a distinção entre “memória fácil<br />

do homem” (recordação) e “a outra”, a “memória pura” (“que é apenas a vertigem das eras, eco de uma<br />

voz que transcende os limites do tempo, [...] uma pura vibração para os quatro cantos do mundo, uma pura<br />

expectativa de uma interrogação submersa”), diz Rosa Goulart que a memória pura<br />

dir-se-ia assim uma espécie de memória metafísica”, e que “a memória concebida desse modo nos<br />

ensaios é a que entra também na prática romanesca. E, obviamente, funcionando nestes moldes, é<br />

radicalmente abalada a estrutura temporal da narrativa, seja porque se cria um espaço delirante onde<br />

nada se avança no domínio factual, seja porque, sendo a memória pura ‘eco de uma voz que transcende<br />

os limites do tempo’, ela se liga à intemporalidade segundo a qual o texto lírico se estrutura.<br />

Para Alberto Soares, como para outros narradores/personagens de Vergílio, a memória não recupera<br />

propriamente os fatos, mas recria-os. Ou quase os ‘esquece’ sem que, no entanto o presente da escrita<br />

deles prescinda – se bem que deles se afaste às vezes para um tempo ainda mais antigo do que a-<br />

quele onde esses fatos se situaram. (GOULART, Rosa Maria. Op. cit., p. 139-140, itálicos da citação).

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