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As diferenças de linguagem – e conseqüentemente de comunicação – entre Jorge e<br />
o seu filho, conduzem a uma associação com os temas correlatos da Palavra (matéria de<br />
reflexão muito freqüente) e das línguas (“uma língua é uma coisa divertidíssima e estúpida”<br />
– p. 45) 27 . É a partir desta idéia a respeito de uma língua (“coisa divertidíssima e estúpida”)<br />
e de que a linguagem é criadora ou refletora de mundos e consciências, que a ironia<br />
do escritor elabora o discurso do chefe político revolucionário de Nítido nulo. Um discurso<br />
velho, anacrônico, arcaico em forma e conteúdo, em ideologia e em estilo, elaborado com a<br />
linguagem medieval de Fernão Lopes 28 . O efeito da linguagem velha em que se elabora o<br />
discurso do chefe transmitido por emissão radiofônica, é extraordinário:<br />
– Prazer-me-ia que os que esto ouvissem filhassem boa tençon de guisa que ensino<br />
e avisamento ouvessem por nos e por si. [...].<br />
– E porquanto asinha poemos rezão u rezão nem nenhữa cousa val [...] desi punhemos<br />
de correger as afeiçons [...] Amigos apacificai-vos, ca eu vivo e são som, a<br />
Deus graças [...] Prazer nem novidades nom cureis de husar, ca nom havereis comprida<br />
saude. (NN, p. 123 e 124, em itálico no texto transcrito).<br />
27 O tema da Palavra é também um dos temas de sempre, em V. F. O da língua, e particularmente o das línguas<br />
estrangeiras, senão mesmo em romances anteriores já está em Alegria breve:<br />
Vanda fala com o Inglês em inglês. Sei muito mal o inglês, apanho palavras extraviadas e é como se<br />
de repente abrisse uma fresta e espreitasse para dentro. Mas vejo pouco. Se não visse nada, acharia<br />
piada. Porque sempre achei piada a dois tipos que falem uma língua totalmente desconhecida. É um<br />
grasnar parvo. E o curioso é que eles riem, ruborizam-se, ficam sérios, espantados, como se estivessem<br />
mesmo a falar língua de gente, como se de fato ambos se entendessem. E todavia não falam: estão<br />
a coaxar para um lado e para o outro. Mas do inglês sei coisas. Sei water, wanderful, love. Sei<br />
mais. A cada palavra que surge ao meu conhecimento, a conversa de Vanda é plausível. Mas Vanda<br />
é já de si plausível, eu conheço-a. Mesmo que eu não conhecesse palavra alguma, ela estaria falando.<br />
Extraordinariamente, o Inglês recupera a sua força perdida. Está em sua casa, na sua língua, passa<br />
de si para Vanda, regressa dela para si. Estão construindo um mundo, são ambos poderosos. Extraordinariamente<br />
o Inglês deixou de ser frágil. (AB, p. 192, itálicos da citação).<br />
Repare-se que, quando Ema pede a Vanda e ao Inglês que falem em português para que todos os compreendam,<br />
o estrangeiro diz que da língua portuguesa “saber pouquito”, o que, na visão do narrador, o torna<br />
“imediatamente frágil outra vez.” (ibid.). Repare-se ainda que, se V. F. assume a idéia que esta citação<br />
contém, o estrangeiro, ao falar na sua própria língua, “está em sua casa”. A língua enquanto casa é o mesmo<br />
que a língua enquanto pátria, o que de imediato faz lembrar a “pátria da língua” em Fernando Pessoa/Bernardo<br />
Soares (“Minha pátria é a língua portuguesa”). E ainda mais: falando Vanda e o Inglês na língua<br />
do estrangeiro, “estão construindo um mundo, são ambos poderosos”, ou seja, o mundo constrói-se pela<br />
linguagem, ou, essencialmente, pela palavra (o Verbo). Quando é solicitado a “sair” ou “descer” da sua<br />
língua, o estrangeiro torna-se “frágil outra vez”.<br />
28 V. F. registra no seu diário a seguinte anotação: “27– junho [1969] (sexta). [...]. Esbocei ontem o discurso<br />
do Teófilo para o romance [Nítido nulo]. Linguagem de Fernão Lopes – e toda a ironia a quis aí. Curioso:<br />
não se imita uma linguagem já morta. Os falsários. O processo mais seguro é simplesmente cerzir, fazer<br />
‘colagens’ de expressões dos textos. Saindo disso, lá escapa logo um termo que é meu ou do nosso tempo.”<br />
(CC1, p. 50).