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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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189<br />

quintal uma flor silvestre, amarela, linda... Apanhou-a, mostrou-a à mãe, levou-a para casa.<br />

Foi posta pela mãe num copo quebrado, com água, sobre uma mesinha junto à estampa de<br />

uma Senhora das Dores. Mas alguns dias depois, porque estivesse murcha, a mãe jogou-a<br />

fora, para o quintal. Lúcio foi buscá-la, dizendo à mãe que a flor não estava murcha e recolocou-a<br />

no seu lugar. Indo verificar, a mãe viu a flor murcha, ralhou com o filho e novamente<br />

atirou a flor ao lixo do quintal. Novamente o menino a foi buscar, e “a flor reverdeceu,<br />

amarela viva, as pétalas abertas” (NN, p. 212), exalando o seu perfume. Mas quando<br />

Lúcio retirava da flor o seu olhar e era a mãe quem olhava para ela, então mais uma vez a<br />

flor murchava. Até que a mãe compreendeu o “milagre” e teve medo de que o filho morresse.<br />

Meteu-o na cama, acendeu o pavio e pôs-lhe a flor num banco ao pé da cabeceira. Estava<br />

num copo, mas sem água, que não era preciso, só o copo. Ele olhava, a flor reverdecia<br />

e cheirava. Depois não a olhava, a flor ficava murcha e não cheirava. Depois tornava<br />

a abrir os olhos, a mãe via. Então ele teve pena da flor, porque sem ele não existia, [...].<br />

Por isso fazia esforços para não fechar os olhos, [...]. (NN, p. 214-215).<br />

Mas já então Lucinho adoecia, lutava tensamente contra a morte, e quando enfim<br />

acabou, “imóvel, pálido, as mãos ainda crispadas”, também assim ficou “imóvel a flor<br />

murcha no copo” (p. 216).<br />

De uma beleza pungente, o episódio da morte de Lúcio assemelha-se a uma parábola<br />

inserida na estrutura do romance. E só como uma parábola (com o seu traço de milagre<br />

ou de fantástico) poderá ser compreendido: instante de doce suavidade e de emoção na<br />

memória de quem vive os últimos momentos num amargo mundo desagregado e seco de<br />

humanismo. E o que esta parábola quererá dizer (entre outros significados porventura possíveis),<br />

é que num mundo assim, só a absoluta inocência da infância é capaz de ver a beleza<br />

e a vida onde quer que elas estejam. “Porque a beleza não está numa parte privilegiada<br />

do mundo, mas é a essência das coisas” (NN, p. 207-208), e porque “a infância existe! [...].<br />

Como a manhã ou o botão de rosa e tudo o mais que já está assente para a poesia e tanto<br />

que os poetas já nem falam nisso por ser demasiado evidente.” (p. 208). E vista a beleza na<br />

sua pureza e verdade essenciais que só os olhos da inocência podem ver, é preciso que o<br />

inocente morra para que a beleza, a pureza e a verdade não se maculem. É preciso que o<br />

inocente morra, ainda que isso tenha a violência de um crime. E por isso Lucinho morrerá,<br />

como morreu Cristina em Aparição. Como quer que seja, o episódio da morte de Lúcio

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