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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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de fundar um novo mundo e um novo tempo): “a cólera da justiça vai abrasar toda a terra.<br />

E a terra será pura outra vez e o homem poderá então construir a sua morada.” (NN, p. 99).<br />

Mas há ainda um terceiro “profeta”, surgido durante a sessão de julgamento de Jorge:<br />

– Criminosos de todo o mundo, ouvi-me!<br />

os olhos raiados de profecia, tinha os cabelos num vendaval. E verticalmente, o silêncio.<br />

Mas instantâneo, sincrônico, o engatilhar metálico de pistolas, num friso sutilíssimo da<br />

minha alucinação. E logo frenético, picotado, um disparo simultâneo – e o homem ficou<br />

esburacado de balas. O sangue rebentou em vários buracos como jatos de mangueiras<br />

contra a cara dos magistrados, escorria espesso, coagulava como papa pelo chão. O homem<br />

virou-se eu vi-lhe a cara, sorria. Um rego de sangue descia-lhe da testa, escorria<br />

pelos dentes em sorriso, para o lábio de baixo, o queixo, saía talvez da boca, a língua<br />

com sangue, os dentes brancos entre o sangue, toda a boca numa massa sangrenta, sorria<br />

sempre. Houve um tiro ainda isolado, ele estremeceu um pouco, sorriu ainda. Tinha<br />

uma coisa muito importante a dizer nos olhos, no sorriso. Ergueu mesmo um pouco a<br />

mão com um dedo de aviso no ar. Depois caiu. Não. Depois não caiu. Depois disse:<br />

– Eu não morro!<br />

Depois é que caiu. Ou saiu pela porta fora? (NN, p. 300-301).<br />

Jorge estaria também nesta seqüência de “profetas”, se considerado enquanto Verbo<br />

da revolução. Foi ele a sua palavra, a sua voz, a sua idealização. Mas havendo sido traída<br />

essa idealização, traído também fora Jorge naquilo sobre o que profetizara, nos ideais que<br />

propusera, nas “verdades” em que acreditara e pelas quais se fizera a revolução. E à espera<br />

do fim, numa cela de cadeia, Jorge não tem mais sobre o que profetizar, a não ser sobre a<br />

nulidade de tudo, nulidade que lucidamente percebe, nitidamente vê. Nítido, entretanto<br />

nulo, é o mundo e tudo o que está nele. Jorge é o último profeta da nulidade, o arauto do<br />

nada, o quarto e derradeiro pregador do apocalipse, que a si mesmo se acompanha desde a<br />

infância. “Profeta” de um mundo morto e vazio, não espera mais nada nem ninguém. Não<br />

traz “nenhum messias na algibeira”...<br />

A morte da criança, ou a inocência sacrificada, é uma das constantes de maior vigor<br />

e talvez de maior presença nos romances de Vergílio Ferreira. Cristina, em Aparição, o<br />

filho de Paula, em Cântico final, os filhos de Adalberto e de Jaime, em Estrela polar e A-<br />

legria breve, são exemplos dessa recorrência em que também se inscreve a morte de Lúcio,<br />

em Nítido nulo. No universo simbólico vergiliano o filho significa a continuidade da pre-

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