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[...] – ó imbecis! Se vos disserem que é pecado – não! Fornicai em abundância,<br />
que dos fornicadores é o reino dos céus, [...]. Se vos disserem que sabem e mostrarem<br />
os livros onde isso vem – não! Queimai os livros todos, porque a verdade ainda não foi<br />
escrita e dos novos ignorantes é o reino dos céus. Se vos disserem que há uma Lei –<br />
não! Perguntai-lhes quem é que fez a Lei e desobedecei, que dos desobedientes é a glória<br />
eterna.<br />
– Em verdade vos digo que a cólera da justiça vai abrasar toda a terra. E a terra<br />
será pura outra vez e o homem poderá então construir a sua morada [...]. (p. 98-99).<br />
E a este ponto do discurso, como numa sobrenatural intervenção da natureza, um<br />
imenso vendaval levantou-se arrancando das mãos e das pastas dos estudantes que ouviam<br />
o “profeta”, milhares de folhas de papel que “subiam alto, num giro rápido, pairavam suspensas,<br />
dispersas, cobrindo o céu”, e “todo o espaço do largo era um turbilhão de papéis”<br />
que “subiam vertiginosos, flutuavam em ronda lá em cima” e “o homem tinha o braço i-<br />
menso erguido” (p. 100). “Depois o vento cessou. Um instante a papelada pairou ainda no<br />
ar”, até começar enfim a cair e todo o largo ficar coalhado de papéis. “Foi quando o homem<br />
pegou do apito que tinha dependurado ao pescoço, deu uma apitadela estrídula:<br />
– Já está.” (ibid.).<br />
E o desenlace da cena:<br />
Então ouvimos um tropear de botas, cardadas decerto – tropa que passava? o tropear<br />
crescia em estampidos. Até que cessou. E logo atrás, um ruído breve de gatilhos, o homem<br />
estava quieto no alto do seu trono, aguardava. Até que sincrônico, um estrondo só,<br />
nos quatro cantos do céu – o homem tombou pesadamente de costas. Estava de peito para<br />
cima, a boca aberta, os olhos abertos, a assistência foi debandando devagar. De um a<br />
um e em silêncio, lentamente, davam costas, a noite caiu enfim. Instantâneas e a um<br />
tempo acenderam-se as luzes do largo. O homem tinha a cara banhada de sangue. Ficou<br />
só no largo deserto. E eu. (NN, p. 100).<br />
Estão evidentes, nos discursos dos “profetas”, as intenções ou as inflexões políticoreligiosas<br />
tratadas de forma paródica, apontando para um demolidor sentido apocalíptico<br />
na pregação da desordem, da desobediência e do caos. Mas da devastação apregoada pelo<br />
orador levanta-se a esperança da construção de um mundo novo (tal como a esperança de<br />
Jaime – de Alegria breve –, aguardando na aldeia arrasada o regresso do filho que haveria