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51) – “a trompete [sic] há-de tocar sobre a cidade morta, imensa, como a tuba dos anjos do<br />
fim” (p. 61) – e que lhe relembra outra ou outras: a do filme “A cidade morta” – música em<br />
que “havia uma orquestra e uma trompete [sic] cortava-a de alto a baixo, cortava a platéia ,<br />
dividia o mundo” (p. 74) – e uma outra remotíssima, da infância, ouvida “na aldeia, pelas<br />
noites de inverno”, na voz de um David que cantava a encomendação das almas “ao longo<br />
das ruas [...] – Ó almas que estais penando –” (p. 76). Música do fim ou do anúncio, trombetas<br />
da revolução, do apocalipse ou do juízo final. Música – a do trompete – para pontuar<br />
o fluxo de uma memória vertiginosa e intensa que se “materializa” na nitidez das sucessivas<br />
imagens 21 .<br />
A destruição da estátua de Jorge por ele mesmo é referência de vários aspectos: a<br />
ação de Jorge prende-se à desmistificação de uma mentira, já que ele não se considera “herói”<br />
da revolução e portanto não mereceria a estátua; destruir a estátua é ao mesmo tempo<br />
um ato de despolitização e de dessacralização; aponta para a extinção de algo impuro, ou<br />
injusto, ou inverídico e é por isso – sobretudo pela relação com o “impuro” – que Helder<br />
Godinho relaciona a destruição da estátua com a morte do cão, significando, uma e outra, a<br />
“destruição do Passado.” 22 . Mas sem dúvida que o episódio também representa um atentado<br />
contra a representação da importância do homem, o que, fatalmente se opõe à “divinização”<br />
do animal.<br />
Assim como o homem mata o cão (em Aparição, em Alegria breve e em Nítido nulo)<br />
quer seja ele símbolo do Passado, da impureza, da inferioridade animal ou da inocência,<br />
outros símbolos da ausência de culpa serão também eliminados pela violência humana ou<br />
por uma força que a ultrapassa. Num dado momento em que o cão regressa ao alcance da<br />
visão de Jorge e se empenha num trabalho fisiológico que ele acompanha com atenção,<br />
21 Repare-se que na memória de Jorge a lembrança da sessão do seu julgamento “enovela-se” com a lembrança<br />
da música do trompete:<br />
Todo o juízo final sobre ações e palavras humanas não se faz sobre as palavras e ações mas sobre os<br />
intervalos delas. Porque nos intervalos é que elas significam. [...]. Mas agora julgo-os pela comum<br />
verdade que é nossa, deles e minha, [...]. Porque o juízo dos mortos é também o dos seus juízes. A-<br />
gora julgo-os na irmanação da sala do tribunal que nos unifica, mas com a distanciação que me vai<br />
da minha mesa de juiz ao seu banco de réus. É a diferença que nos separa dentro da mesma verdade<br />
enquanto é a mesma [...]. Estava distraidamente falando da justiça e dos juízes, a ver até onde, se<br />
começamos a pensar. [...]. A trompete [sic] ressoa até ao cabo do mundo. Metálica, ressoa, grave. É<br />
um slow pelos espaços, danço com Vera, empernando duramente com ela. [...]. A toada do slow vem<br />
do lado de lá, plácida, ondeia ao ondear dos meus olhos. Sigo-a ao impulso que me vem nela e me<br />
orienta o pensar, não bem no que penso mas na fadiga que o dissolve. [...]. Deve ter ainda uns restos<br />
de música na boca, o trompetista. São os restos que ainda ouço depois que se calou, o prolongamento<br />
do espanto, que dura mais que a razão dele. (NN, p. 78-79).<br />
22 GODINHO, Helder. O universo imaginário de Vergílio Ferreira, p. 87.