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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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182<br />

deu a crença na sua própria grandeza e nos valores que criara como substitutivos do absoluto.<br />

Descobrira-se pequeno, impuro e animal. Era só mais uma coisa, num “universo autônomo<br />

de objetos”, coisas que Jorge pode ver da janela gradeada da sua cela: estacas para<br />

armação de toldos, casas fechadas, passadeiras sem função, bancos empilhados na areia,<br />

rochas, falésias, barcos e gaivotas que passam (como manchas no horizonte ou riscos sem<br />

sentido no ar), os três pescadores – homens, mas destituídos de humanidade, porque apenas<br />

três pontos para a observação de Jorge – e o cão.<br />

Intensificando a relação de Nítido nulo com o nouveau roman tem-se o evidente parentesco<br />

da técnica narrativa deste livro com a narrativa cinematográfica. Talvez se pudesse<br />

invocar aqui alguns diretores de cinema – sobretudo franceses – dos anos 60 (Renoir ou<br />

Alain Resnais, por exemplo) que fizeram a nouvelle vague e levaram à tela obras dos novos<br />

romancistas. Os olhos que através das grades da janela vêem o que lá fora está ao alcance<br />

da visão semelham bem o “olhar” de uma câmera cinematográfica, que ora exibe<br />

panoramas de tela inteira, ora se concentra neste ou naquele detalhe; ora afasta para o quase<br />

invisível o que estava sendo mostrado a meia-distância, ora traz, com lente poderosa,<br />

para junto do espectador o que, pela distância, seria inalcançável pelo seu olhar. Ora se<br />

detém demoradamente em objetos fixos – casas fechadas, inúteis estacas para toldos, passadeiras,<br />

um mastro com uma bandeira hasteada, rochas, a falésia –, ora acompanha o que<br />

se move – um ou outro barco que passa, um traço de gaivota no ar, o cão que pela praia<br />

segue para o infinito, os pescadores que vêm, que se instalam e ficam demoradamente até<br />

partirem outra vez, o cão que regressa do infinito e se deita na areia em atitude de espera e<br />

ao alcance do olhar do homem ou do “olhar” da câmera. Estas imagens do presente do narrador-literário<br />

ou do narrador-cinegrafista alternam-se, em jogos de flash-back, com as que<br />

a memória projeta, desde o passado mais remoto, ora lentamente, ora em grande velocidade,<br />

ora com intensa nitidez, ora rasuradas de fumo ou de neblina ou da embriaguez do narrador<br />

que bebe cervejas compulsivamente, e ora se “suspendem” ou “congelam”, fixadas<br />

na tela ou na memória, ora se precipitam num simultaneísmo talvez só possível de obter<br />

em linguagem cinematográfica ou pela vertigem fragmentária de involuntárias lembranças<br />

que afluem em alta rotação. E condicionando em sugestão e atmosfera, ou “emoldurando”<br />

ou até “presidindo” a tudo isso, uma música ininterruptamente ouvida ou recordada na<br />

memória, a música de um trompete invisível, talvez um “toque de mortos”, um “toque a<br />

enterro”... uma “música de dança, chama-se O silêncio”, música dançada por Jorge, no<br />

passado, com Vera, ou com Marta... (NN, p. 47-48). Música de “som áspero e triste” (p.

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