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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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179<br />

Se a história e a psicologia do personagem tornam-se cada vez mais difíceis de<br />

descrever sem que se caia no anedótico ou episódico, não é apenas porque Balzac, Stendhal<br />

ou Flaubert já as descreveram, mas porque vivemos numa sociedade diferente daquela<br />

em que eles viveram, uma sociedade em que o indivíduo como tal e, implicitamente,<br />

sua biografia e sua psicologia, perderam toda a importância verdadeiramente<br />

primordial e passaram ao nível da anedota e do episódio acidental. 14<br />

Com relação a Vergílio Ferreira, é importante observar que muito antes de escrever<br />

Nítido nulo ele já havia abandonado a concepção da personagem como “psicologia”, substituindo-a<br />

por uma concepção “existencial”, assim como abandonara – e cada vez mais<br />

passaria a abominar – o romance que simplesmente “conta” uma história. Isso exatamente<br />

para fugir ao anedótico, ao “episódio acidental”, tanto quanto às repetições e limitações da<br />

“psicologia” romanesca. Isso já se pode ver desde Aparição, mas é particularmente visível<br />

em Estrela polar e Alegria breve. Em Nítido nulo tem continuidade o projeto romanesco<br />

anunciado e inaugurado em Estrela polar 15 .<br />

Mas o ensaio de Goldmann contém ainda bastantes reflexões de interesse a uma a-<br />

proximação com a arte romanesca vergiliana, e, particularmente, com o romance de que<br />

aqui se está tratando. Depois de haver referido o conceito de coisificação enquanto significado<br />

econômico-social de origem marxista e trazido por Lukács para a literatura, o ensaísta<br />

formula a seguinte hipótese:<br />

Parece-me que aos dois últimos períodos da história da economia e da coisificação nas<br />

sociedades ocidentais correspondem, efetivamente, dois grandes períodos na história<br />

das formas romanescas: aquele que caracterizarei de boa vontade pela dissolução do<br />

personagem e no qual se situam obras extremamente importantes, tais como as de Joyce,<br />

Kafka, Musil, A náusea, de Sartre, O estrangeiro, de Camus, e, muito provavelmente<br />

como uma de suas manifestações mais radicais, a obra de Nathalie Sarraute; a segunda,<br />

que começa apenas a encontrar a sua expressão literária e de que Robbe-Grillet é um<br />

14 Idem, ibidem, p. 174.<br />

15 Sobre a “psicologia” no romance, importa ler esta anotação de Conta-Corrente 1: “3-março [1969] (segunda).<br />

A ‘psicologia’. Não me desagrada ler um livro (romance) em que a análise revela o ‘como’ se é. E todavia,<br />

para meu uso, não me interessa. Estes psicólogos esquecem o que está antes (ou depois) da psicologia<br />

e é infinitamente mais importante. Que significa o estarmos no mundo? Em que assentar um comportamento?<br />

Qual a significação das nossas ‘idéias’ (políticas, etc.)? O estruturalismo, por exemplo, pôs-me o<br />

problema grave (o único) da significação da ‘linguagem’. Como é que os romancistas se não preocupam<br />

com esta coisa tremenda que é o alcance da ‘palavra’ com que escrevem? A psicologia é um tricot de senhoras<br />

desocupadas. Antes de saber ‘como’ sou, é-me muito mais perturbador querer saber ‘o que’ sou. E<br />

‘para quê’. A ‘psicologia tem o seu quê de coscuvilhice feminina. A mulher repara no comportamento dos<br />

outros como naquilo que vestem.” (CC1, p. 27). Cf. também Invocação ao meu corpo, p. 68 e ss.

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