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Se a história e a psicologia do personagem tornam-se cada vez mais difíceis de<br />
descrever sem que se caia no anedótico ou episódico, não é apenas porque Balzac, Stendhal<br />
ou Flaubert já as descreveram, mas porque vivemos numa sociedade diferente daquela<br />
em que eles viveram, uma sociedade em que o indivíduo como tal e, implicitamente,<br />
sua biografia e sua psicologia, perderam toda a importância verdadeiramente<br />
primordial e passaram ao nível da anedota e do episódio acidental. 14<br />
Com relação a Vergílio Ferreira, é importante observar que muito antes de escrever<br />
Nítido nulo ele já havia abandonado a concepção da personagem como “psicologia”, substituindo-a<br />
por uma concepção “existencial”, assim como abandonara – e cada vez mais<br />
passaria a abominar – o romance que simplesmente “conta” uma história. Isso exatamente<br />
para fugir ao anedótico, ao “episódio acidental”, tanto quanto às repetições e limitações da<br />
“psicologia” romanesca. Isso já se pode ver desde Aparição, mas é particularmente visível<br />
em Estrela polar e Alegria breve. Em Nítido nulo tem continuidade o projeto romanesco<br />
anunciado e inaugurado em Estrela polar 15 .<br />
Mas o ensaio de Goldmann contém ainda bastantes reflexões de interesse a uma a-<br />
proximação com a arte romanesca vergiliana, e, particularmente, com o romance de que<br />
aqui se está tratando. Depois de haver referido o conceito de coisificação enquanto significado<br />
econômico-social de origem marxista e trazido por Lukács para a literatura, o ensaísta<br />
formula a seguinte hipótese:<br />
Parece-me que aos dois últimos períodos da história da economia e da coisificação nas<br />
sociedades ocidentais correspondem, efetivamente, dois grandes períodos na história<br />
das formas romanescas: aquele que caracterizarei de boa vontade pela dissolução do<br />
personagem e no qual se situam obras extremamente importantes, tais como as de Joyce,<br />
Kafka, Musil, A náusea, de Sartre, O estrangeiro, de Camus, e, muito provavelmente<br />
como uma de suas manifestações mais radicais, a obra de Nathalie Sarraute; a segunda,<br />
que começa apenas a encontrar a sua expressão literária e de que Robbe-Grillet é um<br />
14 Idem, ibidem, p. 174.<br />
15 Sobre a “psicologia” no romance, importa ler esta anotação de Conta-Corrente 1: “3-março [1969] (segunda).<br />
A ‘psicologia’. Não me desagrada ler um livro (romance) em que a análise revela o ‘como’ se é. E todavia,<br />
para meu uso, não me interessa. Estes psicólogos esquecem o que está antes (ou depois) da psicologia<br />
e é infinitamente mais importante. Que significa o estarmos no mundo? Em que assentar um comportamento?<br />
Qual a significação das nossas ‘idéias’ (políticas, etc.)? O estruturalismo, por exemplo, pôs-me o<br />
problema grave (o único) da significação da ‘linguagem’. Como é que os romancistas se não preocupam<br />
com esta coisa tremenda que é o alcance da ‘palavra’ com que escrevem? A psicologia é um tricot de senhoras<br />
desocupadas. Antes de saber ‘como’ sou, é-me muito mais perturbador querer saber ‘o que’ sou. E<br />
‘para quê’. A ‘psicologia tem o seu quê de coscuvilhice feminina. A mulher repara no comportamento dos<br />
outros como naquilo que vestem.” (CC1, p. 27). Cf. também Invocação ao meu corpo, p. 68 e ss.