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Em N. Nulo, diz-se que a noite é a hora do animal. Por isso: “vigiar, ser homem à<br />
hora do animal” (p. 56). E é esse o grande esforço da arquipersonagem vergiliana: tentar<br />
ser homem à hora do animal, ou seja, utilizar a interrogação para tentar chegar à Ordem<br />
e sair do Mesmo. O cão olha o vazio, mas no vazio não há nada. “A não ser que por ser<br />
cão. Os cães são animais. Os animais são puros. Vêem coisas. Ouvem.” (N. N., p. 103).<br />
Ao cão resta olhar o vazio e esperar o messias. Do lado do mar (p. 103).<br />
Neste livro, em que a procura da Presença se “resolve”, de algum modo, pela aceitação<br />
do “nítido nulo”, é o cão que continua ainda à espera do Messias e, por isso, no<br />
fim, será o cão a morrer e não Jorge. É o duplo que se mantém ligado ao Passado e à<br />
Noite que tem que ser liquidado – como Médor, de A. Breve.<br />
[...]. A morte do cão é, ainda, a morte do Passado e da ligação a um Deus como figura<br />
do dono/Presença escondida. O animal vive do outro lado da rua de Deus (p. 195).<br />
Porque o mistério irrita sempre um cão (N. N., p. 180), ele ladra ao invisível ele é mesmo<br />
a “sentinela do invisível”. Ou seja, a parte de Jorge que ainda não atingiu o nítido<br />
nulo: “Aperto o passo, uma parte de mim não me segue. Atrasa-se, fica longe – onde fica?<br />
Alguém me arrasta pela coleira. E na tarde marítima, meus olhos longos ausentes,<br />
pelo cintilar das águas, como um cão ao engano – até onde?” (p. 192). Por isso a destruição<br />
da sua estátua se liga à morte do cão enquanto destruição do Passado.<br />
[...].<br />
Compreendemos agora porque é que o cão é um deus (N. N.): é que, tal como<br />
Cristo assumiu os pecados dos homens, o cão de Carlos Bruno assume a negatividade<br />
de Berta e morre para que ela possa ser “purificada”. Tal como o cão de N. Nulo é quem<br />
morre – em vez de Jorge? Porque o símbolo pode carregar sobre si os “pecados do<br />
mundo” e levá-los embora, como o bode expiatório ou o Filho de Deus. 8<br />
São flagrantes as diferenças de interpretação que das mesmas cenas se pode fazer,<br />
quer se interpretem de uma perspectiva realista quer da simbólica, embasada esta pelos<br />
estudos sobre o imaginário. Mas como já disse, é a esta que se deve adotar, ou a que se<br />
deve chegar quando o objeto de estudo é um romance como o de Vergílio Ferreira, embora<br />
como ponto de partida se possa tomar o da perspectiva realista. Até porque é esse o caminho:<br />
do real para o simbólico. Como compreender o segundo sem ter passado pelo primeiro?<br />
Decerto para essa inquietante “divinização” do cão se poderia buscar diferentes vias<br />
interpretativas, mas entre elas não se deve esquecer ou desprezar o que esse elemento tem<br />
8 GODINHO, Helder. O universo imaginário de Vergílio Ferreira. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação<br />
Científica, 1985, p. 87 e 91.