21.05.2014 Views

JOS RODRIGUES DE PAIVA

JOS RODRIGUES DE PAIVA

JOS RODRIGUES DE PAIVA

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

174<br />

Na visão deturpada de Jorge, na sua consciência toldada pela quantidade de álcool<br />

ingerida, o cão eleva-se absurdamente a uma superior condição que o impressiona, emociona-o,<br />

leva-o à conjectura de se ajoelhar!... Portanto o animal já não simboliza aqui, como<br />

simbolizara em Mudança, a última companhia possível para o homem, quando este já<br />

não tinha mais como se relacionar com os seus próprios semelhantes. Também já não representa<br />

o lado mais primitivo e animal do ser humano, conforme a leitura de Nelly Novaes<br />

Coelho 6 , nem significa o Passado impuro do Homem que é preciso anular, tal como interpretou<br />

Helder Godinho 7 . Pelo contrário: num certo “raciocínio” de Jorge temos que “os<br />

cães são animais. Os animais são puros. Vêem coisas. Ouvem” (NN, p. 103), e portanto<br />

poderia haver algo onde parecia haver só o vazio sobre o mar para onde o cão uivava. Na<br />

visão deturpada do condenado à morte o cão ultrapassa a importância do próprio homem,<br />

que em estágios anteriores do percurso romanesco de Vergílio Ferreira passara por esse<br />

processo de divinização ou mais exatamente, de sacralização (Cântico final, por exemplo).<br />

Ou descobrira-se sozinho, com a sua humanidade e sem o amparo de Deus (de qualquer<br />

deus – como em Aparição, Estrela polar e Alegria breve). Mas este ver e sentir deturpado<br />

de Jorge coincide exatamente com o momento da sua embriaguez ou semi-embriaguez,<br />

porque horas antes, quando ainda na cela e lúcido, via ainda no cão apenas o animal que<br />

ele era: “o cão uiva ainda. Há um dono no horizonte, chama por ele com desespero. Gostava<br />

de ter à mão uma espingarda para te ensinar a verdade do uivo.” (NN, p. 93). Embora<br />

logo a seguir, quando observa o animal deitado na areia, voltado para o horizonte, “o focinho<br />

entre as patas dianteiras,” já imagina que “é dali definitivamente que espera o messias”<br />

(p. 103), que, para o cão, poderia ser exatamente esse dono ausente, ou alguém que o substituísse<br />

e que o animal esperava, ou desejava que aparecesse... Portanto o significado do<br />

cão modifica-se conforme se modificam a visão e a consciência de Jorge. Mas esta é uma<br />

interpretação que segue uma lógica de perspectivação realista e não é nem pode ser única –<br />

nem talvez mesmo aqui a mais adequada, porque para a leitura do Vergílio Ferreira desta<br />

fase são muito mais apropriados os enfoques que passem pela via do simbólico, do alegórico,<br />

do imaginário, do filosófico. É por esse caminho que a sua leitura tem de ser feita. É<br />

por ele que se tem de entender essa espécie de “jogo” entre ser homem e ser animal:<br />

“Quando a noite vier estará a vida noutro lado – vigiar, ser homem à hora do animal, tatear<br />

as sombras para que o rebanho se não perca.” (NN, p. 56 – o itálico é meu).<br />

6 Cf. nota nº 40 do capítulo anterior.<br />

7 Cf. nota 41 do mesmo capítulo.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!