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Na visão deturpada de Jorge, na sua consciência toldada pela quantidade de álcool<br />
ingerida, o cão eleva-se absurdamente a uma superior condição que o impressiona, emociona-o,<br />
leva-o à conjectura de se ajoelhar!... Portanto o animal já não simboliza aqui, como<br />
simbolizara em Mudança, a última companhia possível para o homem, quando este já<br />
não tinha mais como se relacionar com os seus próprios semelhantes. Também já não representa<br />
o lado mais primitivo e animal do ser humano, conforme a leitura de Nelly Novaes<br />
Coelho 6 , nem significa o Passado impuro do Homem que é preciso anular, tal como interpretou<br />
Helder Godinho 7 . Pelo contrário: num certo “raciocínio” de Jorge temos que “os<br />
cães são animais. Os animais são puros. Vêem coisas. Ouvem” (NN, p. 103), e portanto<br />
poderia haver algo onde parecia haver só o vazio sobre o mar para onde o cão uivava. Na<br />
visão deturpada do condenado à morte o cão ultrapassa a importância do próprio homem,<br />
que em estágios anteriores do percurso romanesco de Vergílio Ferreira passara por esse<br />
processo de divinização ou mais exatamente, de sacralização (Cântico final, por exemplo).<br />
Ou descobrira-se sozinho, com a sua humanidade e sem o amparo de Deus (de qualquer<br />
deus – como em Aparição, Estrela polar e Alegria breve). Mas este ver e sentir deturpado<br />
de Jorge coincide exatamente com o momento da sua embriaguez ou semi-embriaguez,<br />
porque horas antes, quando ainda na cela e lúcido, via ainda no cão apenas o animal que<br />
ele era: “o cão uiva ainda. Há um dono no horizonte, chama por ele com desespero. Gostava<br />
de ter à mão uma espingarda para te ensinar a verdade do uivo.” (NN, p. 93). Embora<br />
logo a seguir, quando observa o animal deitado na areia, voltado para o horizonte, “o focinho<br />
entre as patas dianteiras,” já imagina que “é dali definitivamente que espera o messias”<br />
(p. 103), que, para o cão, poderia ser exatamente esse dono ausente, ou alguém que o substituísse<br />
e que o animal esperava, ou desejava que aparecesse... Portanto o significado do<br />
cão modifica-se conforme se modificam a visão e a consciência de Jorge. Mas esta é uma<br />
interpretação que segue uma lógica de perspectivação realista e não é nem pode ser única –<br />
nem talvez mesmo aqui a mais adequada, porque para a leitura do Vergílio Ferreira desta<br />
fase são muito mais apropriados os enfoques que passem pela via do simbólico, do alegórico,<br />
do imaginário, do filosófico. É por esse caminho que a sua leitura tem de ser feita. É<br />
por ele que se tem de entender essa espécie de “jogo” entre ser homem e ser animal:<br />
“Quando a noite vier estará a vida noutro lado – vigiar, ser homem à hora do animal, tatear<br />
as sombras para que o rebanho se não perca.” (NN, p. 56 – o itálico é meu).<br />
6 Cf. nota nº 40 do capítulo anterior.<br />
7 Cf. nota 41 do mesmo capítulo.