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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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Jorge, o diálogo “chegou a meter pontapé” (p. 243). “Para o fundo da praia, o cão [...] parte<br />

na rota do desconhecido, para lá do limite da baía, do nevoeiro alto das ondas.” (p. 222).<br />

Mas vai regressar, e outra vez será visto por Jorge, “deitado ao comprido, sempre” (p.<br />

277). Depois é a visão “ao contrário”, a visão do cão sobre Jorge, mas “adivinhada” ou<br />

“sentida” pelo homem: “o cão vê-me, está atrás, pasmado na sua melancolia ou na sua obstinação<br />

esperançada e quieta. O cão vê-me, deve estar a rir-se de mim por dentro com o seu<br />

riso canino. Ou não me vê? Ou não serei para ele muito viável como homem de que se seja<br />

cão?” (p. 283).<br />

Seguindo o olhar de Jorge, é mais que perceptível o “crescimento” deste cão, de<br />

início essencialmente animal, sem qualquer indício de humanização, apenas um cão “solitário”<br />

sem nome e sem dono, que evolui – ainda que pela via da ironia ou da embriaguez<br />

de Jorge – para uma dimensão de importância. Cão “metafísico”, “anarquista”, “filósofo”.<br />

Cão que procura o dono, que espera alguém ou o messias, que busca o absoluto na atividade<br />

sexual, que tenta o diálogo com o homem (que o agride a pontapés), que é capaz de uma<br />

atitude melancólica, obstinada ou esperançada ou de rir-se do homem, “por dentro com o<br />

seu riso canino”... Este cão de Nítido nulo é, até aqui, único na simbólica romanesca de<br />

Vergílio Ferreira. Mas é preciso lembrar que o animal está sendo visto pelo olhar rasurado<br />

de uma consciência perturbada de desequilíbrio e de delírio e só por aí, e também pela via<br />

do próprio simbólico, se pode interpretar a cena que vem a seguir e que será a penúltima de<br />

que o animal participa. Ao final do romance Jorge é retirado da cela para a execução, que<br />

se fará na praia, por um pelotão de fuzilamento. O final do romance é também o fim do<br />

dia. Toda a diegese decorre sobretudo no tempo de uma tarde. A manhã, essa “hora suspensa”,<br />

já havia decorrido, era memória. Haveria a seguir a tarde, e depois a noite, ou já<br />

não ela, mas só a tarde, ou o momento que há entre ela e a fímbria noturna. E era talvez<br />

essa a hora “flagrante e inteira”, pela qual um deus qualquer deveria estar à espera. Foi a<br />

essa hora transitória, quando as sombras “corriam já quase toda a praia até à orla das ondas<br />

– até ao extremo da baía” que ocorreu o espanto:<br />

Só o cão. Via-o sempre. Talvez porque estivesse entestado ao sol, com um halo à volta,<br />

entestado ao clarão vermelho que o sol fora largando atrás. E era belo assim como deitado<br />

num berço, divinizado de luz, um deus nascido? Um cão. Olho-o longamente, comovo-me<br />

– se eu me ajoelhasse? (NN, p. 313).

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