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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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apenas algumas horas o separam. Portanto, está praticamente à hora da morte, e já pode<br />

sentir que, “no corte de tudo, há a súbita distância do nunca mais. Diz-se que à hora da<br />

morte. Deve ser verdade, revê-se a vida toda. É o instante infinito com a eternidade no centro.”<br />

(NN, p. 64). É uma hora grande, essa que ele vive.<br />

É uma hora suspensa, creio que é razão. Houve o amanhecer já antes, vai haver a tarde<br />

depois, agora não há nada entre antes e depois. É uma hora absoluta, creio que devia<br />

nascer um deus. Que deus? Sei lá. Um deus. [...]. Quanto a esta hora, é flagrante e inteira,<br />

há-de haver um deus qualquer à sua espera. Não sou profeta, não trago Messias nenhum<br />

nas algibeiras [...]. (Ibid., p. 13).<br />

Mas ao invés de um deus, o que Jorge vê, logo em seguida, é um cão. Um “cão solitário”,<br />

que “passa à borda da água [...], o focinho baixo, fareja. Pára em alguns sítios especiais<br />

para um farejo mais escrupuloso, segue depois, deve seguir alguma pista que é decerto<br />

a do seu destino de cão.” (ibid., p. 20-21). Decerto é este o cão mais animal dos romances<br />

de Vergílio Ferreira: não tem o “olhar humano” do Mondego (de Aparição) nem serve<br />

de companhia a ninguém. Ele próprio é um cão “solitário”, que, dependendo das “atitudes”<br />

que tome, movimentos que faça, posições em que permaneça, vai sendo classificado, segundo<br />

a visão mais ou menos irônica de Jorge, de cão “metafísico”, “anarquista”, “filósofo”...<br />

Mas a visão de Jorge nem sempre parece ser irônica, e nela, o cão pouco a pouco se<br />

vai “humanizando”, ou talvez mais que isso (porventura por efeito da cerveja que ele bebe<br />

abundantemente na cela?). E assim, se o cão dorme deve ser porque está “à espera de alguém”,<br />

e logo o observador transfere para si o ato e a sensação de esperar alguém, que é<br />

sempre um ato de esperança: “Em todo o caso é bom pensar que alguém me espera. Estar<br />

só. É difícil.” (NN, p. 52). Se o cão se põe “a andar ao longo da praia”, vai “a caminho do<br />

infinito” (ibid., p. 71). Se, voltado para o mar, “ergue o focinho oblíquo num grande uivo”<br />

que Jorge não ouve, é porque “deve andar à procura do dono nos sítios mais plausíveis” (p.<br />

89). “[...] virado para o horizonte. Deitado ao comprido, o focinho entre as patas dianteiras,<br />

é dali definitivamente que espera o messias.” (p. 103). Tentando fazer sexo com uma cadela<br />

que passava (ou outro cão?), estava “à procura do absoluto”, e porque não consegue, é<br />

que não deveria ser a “altura própria” de o procurar... “e o outro cão passa, ele fica. Estende-se<br />

outra vez ao comprido, põe-se outra vez à espera.” (p. 131-132). Ladrando para um<br />

dos três pescadores que se demoram na praia, em frente ao olhar de Jorge, na visão deste o<br />

cão tenta o “diálogo” com o homem, mas acaba por desistir da hipótese, porque, parece a

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