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consciência, o Surrealismo, o simultaneísmo, o nouveau roman. Com este, principalmente,<br />
por confissão do próprio Vergílio Ferreira 3 .<br />
A ausência de uma escrita em Nítido nulo é sugestiva de um maior grau de abstração<br />
deste romance relativamente aos anteriores. Naqueles, a memória, a reminiscência, a<br />
evocação, o sentimento, a imaginação, o mito, tudo se fixa, se corporifica, se materializa<br />
numa escrita que dá testemunho de uma experiência. Neste, nada se fixa como “depoimento”<br />
da experiência vivida por Jorge, tudo escoa na verbalização oral ou mental, que obriga,<br />
em termos de representação literária, à formulação de um texto desconexo, delirante, caótico,<br />
labiríntico, fragmentário, capaz de operar a fusão de vários planos narrativos, temporais<br />
e espaciais, só assim sendo possível intentar a representação romanesca dessa abstração<br />
que é o texto abstrato de Jorge, o seu texto não escrito. Não escrito mas para o qual, ainda<br />
3 V. nota 57 do segundo capítulo.<br />
As relações de Nítido nulo com obras representativas do nouveau roman são mais ou menos evidentes<br />
a partir de aspectos da técnica narrativa, um certo “modo” narrativo que surpreende ou apreende, num<br />
presente contínuo o que o narrador vê e de imediato transforma em narração. Veja-se, por exemplo, este<br />
trecho inicial de Nítido nulo:<br />
168<br />
Agora a praia está deserta. Os últimos banhistas subiram a longa escadaria, desapareceram<br />
há dias atrás da falésia. E estranha, uma melancolia cresce como erva, deixa um rastro nas coisas.<br />
Memória do que morreu, sutil, do que vibrou – e a indiferença da terra, da luz. Do mar. Ou talvez<br />
que tudo nasça da certeza do meu fim. Condenado à morte – quando me executarão? – estou aqui à<br />
espera nesta prisão junto à praia. Na realidade, não é uma prisão – um posto da guarda? No extremo<br />
da baía há um fortim, meteram-me aí. A sala é larga e limpa. As próprias grades são pintadas de<br />
branco para deixarem passar a alegria que puderem. Decerto entendeu-se que sofria mais assim. (p.<br />
11).<br />
Alguma coisa há de comum entre este “modo” narrativo e, por exemplo, o de O ciúme, de Robbe-Grillet,<br />
que inicia assim:<br />
Agora a sombra da coluna – a coluna que sustenta o ângulo sudoeste do telhado – divide<br />
em duas partes iguais o ângulo correspondente da varanda. Essa varanda é uma larga galeria coberta,<br />
cercando a casa por três lados. Como sua largura é igual na parte central e nas partes laterais, o traçado<br />
da sombra projetada pela coluna chega exatamente à quina da casa; mas detém-se ali, pois apenas<br />
as lajes da varanda são alcançadas pelo sol, ainda demasiado alto no céu. (ROBBE-GRILLET,<br />
Alain. O ciúme. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 7).<br />
Ou, também, algo em comum entre Nítido nulo e Les gommes (traduzido em Portugal por Entre dois tiros),<br />
do mesmo autor francês:<br />
Na penumbra da sala do “café” o proprietário arruma as mesas e as cadeiras, os cinzeiros,<br />
os sifões de água gazosa; são seis horas da manhã. Não precisa de luz, nem mesmo sabe o que está a<br />
fazer. Ainda dorme. Leis antigas regulam os pormenores dos seus gestos, ocasionalmente salvos da<br />
flutuação das intenções humanas; cada segundo marca um movimento puro: um passo para o lado, a<br />
cadeira a trinta centímetros, três limpadelas com o esfregão, meia volta à direita, dois passos em<br />
frente, todos os segundos delimitados, perfeitos, iguais, sem mácula. (ROBBE-GRILLET, Alain.<br />
Entre dois tiros. Trad. Urbano Tavares Rodrigues. Lisboa: Livros do Brasil, s. d., p. 13).<br />
As comparações poderiam ainda estender-se a outras obras e outros autores representativos do nouveau<br />
roman, por exemplo, a Nathalie Sarraute ou a Michel Butor, mas é desnecessário fazê-lo.