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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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aparente de todo quanto à transgressão formal, mantendo, por exemplo, da tradição, a organização<br />

capitular, inclusive com o requinte da numeração em algarismos romanos marcando<br />

a seqüência dos XXXI capítulos que o compõem. Mas talvez “seqüência” seja também<br />

um termo questionável, porque na verdade não há uma ordem seqüencial no desenrolar<br />

dos fatos de que a narrativa trata e há mesmo uma certa dificuldade em detectar esses<br />

“fatos”, porque toda a matéria formadora do entrecho ficcional está diluída entre memória<br />

e esquecimento, névoas e lampejos de luz, certezas e incertezas, visões, delírio, labirinto,<br />

desconexão. É deste inseguro material que se compõe a torrente do fluxo “memorialístico”<br />

do protagonista do romance. Porque é de um fluxo de memória que se trata, embora de<br />

duvidosa memória, torrente de uma consciência que crescentemente se vai turvando, se vai<br />

fazendo inconsciente, como que mergulhando em estado de embriaguez. A narrativa (ou o<br />

que deveria ser a narrativa) flui, quase escorrega, de modo anárquico, mais ou menos apocalíptico,<br />

às vezes célere, às vezes lenta, repetitiva, desconexa, sem um fio de lógica que de<br />

imediato se perceba e que oriente o leitor pelos desvãos sombrios de uma escrita que pretende<br />

representar o fluir de um pensamento, quase um monólogo interior que procura restaurar<br />

ou reinventar o passado, mas que é freqüentemente perturbado ou alterado pela visão<br />

das coisas presentes, pela intromissão de elementos – um guarda, um cão, um navio que<br />

passa, três pescadores, um militar, um pelotão de fuzilamento – que estão no presente contínuo<br />

do protagonista, presente quase findo e por isso nulo, nitidamente nulo pela proximidade<br />

da morte por execução, e que constantemente se intromete no passado, rememorado<br />

ou reinventado por aquele que é posto à espera do fim.<br />

É preciso ler todo o romance para “pinçar” os elementos de que se compõe a fugidia<br />

trama romanesca, que assim se pode resumir em fábula: Jorge Andrade, escritor, ou<br />

talvez não, e simplesmente um intelectual, diretor literário de importante revista de cultura<br />

(Dafne), envolve-se num movimento revolucionário destinado a derrubar o sistema de governo<br />

estabelecido. O governo cai, a revolução assume o poder, mas, rapidamente, à consciência<br />

de Jorge, manifesta-se “impura”, falseando a “verdade”, criando “mitos”, cometendo<br />

os mesmos erros do regime derrubado. Insurgindo-se contra essa falsidade, principalmente<br />

contra o que fazia dele um (falso) “herói” da revolução, Jorge atrai para si a ira<br />

revolucionária, sendo considerado um traidor do regime que idealizara e ajudara a<br />

implantar, sendo por isso preso, julgado e condenado à morte. A diegese concentra-se no<br />

tempo de espera do sentenciado pela execução, observando-o em todas as suas atitudes:<br />

gestos, pensamentos, divagações, lembranças, desejos... e a partir daquilo que ele pode ver

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