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151<br />
morte da terra que Jaime Faria toca o sino da igreja da aldeia completamente deserta, en-<br />
quanto num solilóquio solipsista expõe em perplexidade o seu sofrimento:<br />
Sofro tanto, a minha alegria ri. Sobre a terra morta, como uma lava final, a neve do início.<br />
O homem espera que o retornem ao ventre, acocorado em miséria sobre o lume que<br />
se extingue. Astros submersos, terra estéril, sobrevivente eu; clamo a morte do homem,<br />
anuncio a sua vinda – Natal. Choro meu de alegria, ó anjos da nova pura. Cântico dos<br />
anjos da anunciação, dos anjos das trevas e do desastre, os sinos bradam para o vazio do<br />
mundo. Virgindade do meu sangue, um Deus Menino vai nascer. Os deuses nascem sobre<br />
o sepulcro dos deuses. Dobro os sinos até ao esgotamento. (AB, p. 256).<br />
Ecos de ensaios do escritor, particularmente de Invocação ao meu corpo, são também<br />
claramente audíveis em Alegria breve. Espécie de pregador (ou evangelista) do erotismo,<br />
Amadeu, personagem do romance descrito como “um tipo lourinho, com a boca em<br />
cu-de-galinha”, portando “um livro de luxo como um breviário, forrado a cetim preto, com<br />
fitinhas de várias cores [...], o título era Dictionnaire érotique moderne” (AB, p. 140), tem<br />
uma “teoria” a expor:<br />
– A crise do mundo toda a gente já sabe, é uma crise de mitos. Ora bem, há que<br />
inventá-los. Ou não bem inventá-los: descobri-los, cultivá-los. [...] um mito não é uma<br />
fábula. Só é uma fábula, quando o mito morreu. [...]. Um mito é uma idéia-força, uma<br />
estrela polar. Que importa que a estrela mude? Enquanto serve, serve.” (AB, p. 140-<br />
141).<br />
– De um a um os mitos gastaram-se-nos.<br />
Interpõe Jaime à exposição da teoria de Amadeu, que continua:<br />
Havia o Grande Mito e havia os mitos subsidiários. O Grande Mito era uma garantia,<br />
como um tronco. A árvore apodreceu. Apodreceu porque sim, como apodrece tudo o<br />
que nasce. Cozinharam-nos o destino há dois mil anos. Alimentámo-nos dele até aos ossos,<br />
já era tempo de acabar.<br />
– E agora? – pergunta Vanda<br />
ou Ema? [...].<br />
– Agora temos de nos bastar a nós próprios. Ora bem: o homem começa e acaba no<br />
seu corpo – diz Amadeu.<br />
E conclui:<br />
– Foi o que ficou dos deuses, das religiões, das doutrinas, dos sistemas: um corpo.<br />
Mistificaram-nos tudo, roubaram-nos tudo. Menos o corpo. (p. 142).<br />
E conclui ainda: