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Há ainda em Alegria breve várias outras referências do que aqui se está tratando<br />
como conotações religiosas do romance. Algumas delas recorrências de romances anteriores,<br />
como por exemplo, a cena em que Vanda, em visita à capela de S. Silvestre, no alto do<br />
pico que o nome do santo batiza, retira uma imagem do altar, cobre-se de vestes rituais e<br />
ocupa o seu espaço.<br />
Direita, em pé no trono do altar. Apeou-se o santo – que tinha ali que fazer.<br />
[...].<br />
Contemplo-a e tremo. Deus existe. Espírito anterior, passa, segue além. Há um<br />
rastro da sua passagem. Como as águas de uma nascente, água visível depois. Vanda e<br />
Deus que passou. [...].<br />
– Que me queres? Pergunta Vanda.<br />
– Desce – digo-lhe eu.<br />
Para um lado e outro do altar há uma espécie de degraus. Vanda então volta-se devagar,<br />
os braços ao longo do corpo, e de um a um desce os degraus até às lajes do chão.<br />
Descalça? Não lhe vejo os pés. Rituais, as vestes arrastam-se no lajedo, prolongam-se<br />
ao excessivo de nós e do instante. Vem pelo meio da capela, pára. É curioso olhar o altar<br />
sem o santo – que é que isto significa? Um altar mutilado. A santa veio até mim.<br />
(AB, p. 108-109).<br />
A cena lembra fatalmente a imagem da ascensão de Elsa (em Cântico final), representada<br />
na pintura de Mário, ao espaço destinado, na capela, à Senhora da Noite. O que<br />
isto significa – tanto em Cântico final quanto em Alegria breve – é a divinização do humano,<br />
o humano substituindo o sagrado, o Homem assumindo o lugar dos deuses, ou de Deus,<br />
ou assumindo, sozinho, a sua própria condição, a da sua humanidade, sem amparo e a proteção<br />
de uma Presença (para usar a terminologia de Helder Godinho) agora definitivamente<br />
ausente. A cena de Vanda no altar é recorrente e culmina com a sua fusão na Virgem, postada<br />
ao lado de S . José, que segura o menino, e ostenta num ouvido o aparelho auditivo de<br />
Luís Barreto. Vanda era casada com Luís Barreto, o engenheiro, mas tinha liberdade para<br />
“emprestar o seu corpo” a Jaime Faria. Quando engravidou, disse-lhe “Vou ter um filho,<br />
mas não terá o teu nome” (AB, p. 182). E quando ele reivindica a sua parte na maternidade,<br />
ela responde:<br />
– Mas ele não é teu! [...]. É meu só. É extraordinário, vê tu. Subitamente pensei:<br />
vou ter um filho. E tu não estavas<br />
presente. Subitamente pensei que ia ser mãe e achei