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que abandonou a terra e o quotidiano.” 42 . E ainda: “Deus é (foi) o nome final da Presença.<br />
A Face última por detrás de todas as faces que a hipostasiam.” 43 .<br />
Se os cães significam uma ligação com o Passado que “é preciso anular”, a impureza<br />
que conspurca a sublimidade da música, elemento mediatizador do encontro do Homem<br />
com a Presença, então explica-se porquê Jaime Faria, já completamente só na aldeia abandonada,<br />
mata o cão Médor: para eliminar uma relação impura com o Passado. A morte do<br />
cão é a morte do Passado impuro do Homem, morte preparatória para a fundação de um<br />
mundo novo por um Homem Novo. Médor era um cão velho, triste, doente e “passadista”.<br />
É um cão reles, surrado a fomes e abandono. Tem o pêlo amarelado, não de um amarelo<br />
de origem, mas do das coisas que envelheceram. Pende-lhe o focinho para a terra. Pende-lhe<br />
tudo para a terra, mas as pernas abertas estacam-no ainda no ar. É um ser vivo.<br />
Respira. [...]. Tem olhos inesgotáveis. Aguados, escorrem a tragédia milenária e a memória<br />
que vem nela. Humanos, afogados no vício do sofrimento. Deus não vê. Que tens<br />
que fazer aqui? Cão! És cão! O homem novo vai nascer. Cão. Com toda a lepra no ar,<br />
especada trêmula em quatro patas trêmulas. Espaço enorme. Eu e tu. (AB, p. 131-132).<br />
[...]. Era um cão passadista. Trazia a cabeça cheia de lembranças e andava num vaivém<br />
para a gente lhe dar razão. Tinha um nome literário, vagamente me lembro de o ter en-<br />
não sabia salvar-se sozinho. (Ibid., p.<br />
contrado não sei onde. Queria salvar-se a si, mas<br />
133).<br />
Matando o cão, Jaime Faria rompe com o passado impuro que pretende anular.<br />
Quando o filho vier e ele lhe houver transmitido a Terra, a Casa e a Palavra, deverá tirar a<br />
própria vida, para que haja apenas um homem novo sobre um mundo novo – sem nenhum<br />
resquício do passado –, para que seja fundada uma nova era ou uma nova Cidade do Homem.<br />
Deverá então haver um a música pura, que suba até às estrelas sem estar enovelada<br />
em uivos de cães e de lobos, porque estes vão um dia silenciar:<br />
Espera: nunca mais ouviste os cães. Terão morrido com o Médor? Choravam o tempo<br />
antigo, eram cães passadistas, terão morrido? Ou terão enfim reconhecido que o seu<br />
mundo era lá baixo [sic], no vale previsto, onde a ilusão ainda é. Aqui não. Há um mundo<br />
difícil a começar, sem deuses a prepararem tudo. (AB, p. 160).<br />
42 Godinho, Helder. Op. cit., p. 197.<br />
43 Id., ibidem, p. 201.