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música suave, direi mesmo delicada”, lembrando “os veios de água pela Primavera, as flores<br />
alegres dos campos. [...] Música triste como uma alegria desesperada” (ibid.) e subita-<br />
agredida pela violência sinistra de uivos de cães que emergem dos “fundos da ser-<br />
mente<br />
ra”, que se multiplicam “enovelando-se na música. Em giros lentos, sobem da fundura dos<br />
córregos, circulam em torno da montanha, erguem o desespero até às estrelas. É uma noite<br />
sem lua, plácida e nítida, verdade simples. Estrelas, uivos e música. Que é que isto quer<br />
dizer?” (ibid.).<br />
Os cães sossegaram. Provavelmente a música parou. Na fímbria branca dos telhados,<br />
nas árvores ossificadas, no ar imóvel – o silêncio. Vibra e retine como um cristal, ouçoo.<br />
Então abruptamente atiro uma patada violenta: para desentorpecer um pé? para tomar<br />
posse do mundo: um estrondo reboa com o anúncio de um Deus. Sou eu, ó noite. Trêmulo<br />
olhar de lágrimas, na solidão astral, e o frio, o frio, adstringente e nulo, restrito em<br />
mim, pequeno, tão só. Terei divindade que chegue? – tão grande o universo. Pequeno e<br />
medroso aqui. Atiro a minha patada violenta, respiro até aos ossos o universo inteiro.<br />
Sou eu. (AB, p. 13).<br />
A espera virá a ser a do filho, desconhecido de Jaime, nunca visto, nascido longe,<br />
das suas relações com Vanda, mulher do engenheiro Luís Barreto que dali se fora embora<br />
com ela, há muito tempo, estando ela grávida... (de quem?, do marido – como ela afirma –,<br />
de Jaime, do inglês?). Mas nesse momento inicial, profundo de cansaço e solidão, a espera<br />
de Jaime ainda era apenas a do dia seguinte: “Regresso, enfim, a casa, acendo o lume. Telenha.<br />
Amanhã? Talvez amanhã. Dorme. Estás tão cansado. Amanhã<br />
rei de ir à mata cortar<br />
é um dia novo.” ( p. 13). Mas o que quererá dizer esse turbilhão, esse caos que, na “verdade<br />
simples” de uma “noite sem lua, plácida e nítida”, envolve estrelas, uivos e música? A perna<br />
verdade um sentido simbólico – nesses uivos de cães e nessa música, que, como numa<br />
gunta “que é que isso quer dizer” já por si só manifesta a presença de um sentido oculto –<br />
espiral, sobem pela montanha, desde os córregos profundos em direção às estrelas. O cão, a<br />
música e os astros estão entre os elementos constantes em toda a simbólica romanesca de<br />
Vergílio. Mas co mo as voltas da espiral, eles vão ampliando o seu sentido a cada passo,<br />
desdobrando conotações cada vez mais largas. Numa primeira e mais longínqua decodifi-<br />
o cão era apenas a “última companhia” que restara ao homem, quando<br />
cação dos símbolos<br />
as suas relações com o humano já não eram possíveis, ou, noutro sentido, como assinalou