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quantos estamos? É inverno, dezembro, talvez, ou janeiro. Tiro a neve com uma pá, traço<br />
o retângulo e cavo. (AB, p. 9).<br />
No decorrer do trabalho, o cansaço, o desalento, a solidão e a memória vão-se definindo<br />
como únicas companhias de Jaime. “Dois cães que assomam à porta do quintal, chupados<br />
de ódio e de fome” (p. 9), têm aspecto ameaçador e ele os espanta a pedradas. Alguma<br />
coisa terá ficado por dizer ou resolver entre ele e a mulher, “um diálogo [...] ficou<br />
suspenso entre [...] ambos, desde quando? – desde a infância talvez, ou talvez desde mais<br />
longe. Um diálogo interrompido com tudo o que aconteceu e que é necessário liquidar,<br />
saldar de uma vez.” (p. 9-10). E a solidão absoluta é uma evidência concreta:<br />
Estou só, horrorosamente só, ó Deus, e como sofro. Toda a solidão do mundo entrou<br />
dentro de mim. E no entanto, este orgulho triste, inchando – sou o Homem! Do desastre<br />
universal ergo-me enorme e tremendo. Eu. Dois picos solitários levantam-se-me adiante,<br />
lá longe, trêmulos no silêncio. Entre eles e a aldeia há um vazio escavado na montanha,<br />
donde sobem as sombras e a neblina. Pela manhã a neve infiltra-se pelos desfiladeiros,<br />
e toda a serra e a aldeia flutuam. Então é como se o tempo se esvaziasse e a vida<br />
surgisse fora da vida. (p. 10).<br />
Também concreta é a evidência do cansaço, do esgotamento sentido ao término do trabalho<br />
ou ao final da vida, suspenso, apenas – este final –, pela expectativa gerada de uma espera:<br />
Cansaço, decerto, e o orgulho e o medo. Será tudo o mesmo? E a resignação, talvez, ou<br />
mesmo a plenitude. Estás velho, como o não sabes? estás velho. Talvez seja assim a velhice:<br />
um esgotamento longo de tudo. E no centro breve, uma verdade final. [...] qual a<br />
tua verdade final? Mas estou tão cansado. Agora não. Olho a aldeia abandonada, perdida<br />
na montanha, ouço o silêncio. E sinto-me aí disperso, irisado em espaço, íntegro e<br />
puro. E nu. (p. 10-11).<br />
Concluído o trabalho, Jaime descansa, em casa. Depois, põe um disco no giradiscos,<br />
abre as janelas e vai percorrer, ao som da música – “triste como uma alegria desesmúsica<br />
que “vem pela janela, multiplica-se nos ocos da serra, avoluma-se no espaço,<br />
perada” (p. 12) – a aldeia vazia, marcada de velhice e decrepitude, pelas “ruas abandonadas,<br />
de casas mudas [...] coalhadas de vozes e de sombras”, [...] quase todas caindo “aos<br />
bocados, as janelas desconjuntadas, algumas de portas abertas.” (ibid.). É um cenário fantasmagórico,<br />
sinistro, como o de uma pintura kafkianamente expressionista, coroado pela<br />
[...]