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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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144<br />

quantos estamos? É inverno, dezembro, talvez, ou janeiro. Tiro a neve com uma pá, traço<br />

o retângulo e cavo. (AB, p. 9).<br />

No decorrer do trabalho, o cansaço, o desalento, a solidão e a memória vão-se definindo<br />

como únicas companhias de Jaime. “Dois cães que assomam à porta do quintal, chupados<br />

de ódio e de fome” (p. 9), têm aspecto ameaçador e ele os espanta a pedradas. Alguma<br />

coisa terá ficado por dizer ou resolver entre ele e a mulher, “um diálogo [...] ficou<br />

suspenso entre [...] ambos, desde quando? – desde a infância talvez, ou talvez desde mais<br />

longe. Um diálogo interrompido com tudo o que aconteceu e que é necessário liquidar,<br />

saldar de uma vez.” (p. 9-10). E a solidão absoluta é uma evidência concreta:<br />

Estou só, horrorosamente só, ó Deus, e como sofro. Toda a solidão do mundo entrou<br />

dentro de mim. E no entanto, este orgulho triste, inchando – sou o Homem! Do desastre<br />

universal ergo-me enorme e tremendo. Eu. Dois picos solitários levantam-se-me adiante,<br />

lá longe, trêmulos no silêncio. Entre eles e a aldeia há um vazio escavado na montanha,<br />

donde sobem as sombras e a neblina. Pela manhã a neve infiltra-se pelos desfiladeiros,<br />

e toda a serra e a aldeia flutuam. Então é como se o tempo se esvaziasse e a vida<br />

surgisse fora da vida. (p. 10).<br />

Também concreta é a evidência do cansaço, do esgotamento sentido ao término do trabalho<br />

ou ao final da vida, suspenso, apenas – este final –, pela expectativa gerada de uma espera:<br />

Cansaço, decerto, e o orgulho e o medo. Será tudo o mesmo? E a resignação, talvez, ou<br />

mesmo a plenitude. Estás velho, como o não sabes? estás velho. Talvez seja assim a velhice:<br />

um esgotamento longo de tudo. E no centro breve, uma verdade final. [...] qual a<br />

tua verdade final? Mas estou tão cansado. Agora não. Olho a aldeia abandonada, perdida<br />

na montanha, ouço o silêncio. E sinto-me aí disperso, irisado em espaço, íntegro e<br />

puro. E nu. (p. 10-11).<br />

Concluído o trabalho, Jaime descansa, em casa. Depois, põe um disco no giradiscos,<br />

abre as janelas e vai percorrer, ao som da música – “triste como uma alegria desesmúsica<br />

que “vem pela janela, multiplica-se nos ocos da serra, avoluma-se no espaço,<br />

perada” (p. 12) – a aldeia vazia, marcada de velhice e decrepitude, pelas “ruas abandonadas,<br />

de casas mudas [...] coalhadas de vozes e de sombras”, [...] quase todas caindo “aos<br />

bocados, as janelas desconjuntadas, algumas de portas abertas.” (ibid.). É um cenário fantasmagórico,<br />

sinistro, como o de uma pintura kafkianamente expressionista, coroado pela<br />

[...]

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