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– Deus é uno e imutável, e a sua palavra é eterna – terminou o Padre. – Deus veio<br />
redimir o homem, ou seja um ser miserável, grosseiro, inferior. Só o podemos reconhecer<br />
desde a nossa pobre estupidez e todos os que querem reconhecê-lo desde uma pretensa<br />
alta intelectualidade, são orgulhosos e pecam. [...].<br />
– Mas meu caro Padre, tu é que pretendes ainda intelectualizar o problema, tu é<br />
que ainda pretendes “demonstrar”.<br />
[...].<br />
Mas subitamente, imprevistamente, vejo uma jogada fenomenal: com a conversa,<br />
Padre Marques distraiu-se.<br />
– Xeque ao rei!<br />
– Ah, malandro, que me apanhaste.<br />
– Só tens duas casas! É xeque-mate a seguir!<br />
Esquece-se da conversa, aplica-se raivosamente a achar uma fuga. Demora-se, a-<br />
penas, demora-se.<br />
– Não tens por onde fugir. (AB, p. 238-239).<br />
E logo a seguir a esta derrota no “jogo de xadrez”, Padre Marques foi-se embora da<br />
aldeia, por uma certa madrugada... “Que é que isto quer dizer?” (p. 13, passim). É uma<br />
pergunta que Jaime Faria faz constantemente a si próprio. Quererá por certo dizer da deserção<br />
de Deus, do abandono do Homem, finalmente sozinho diante de si mesmo. De ano<br />
para ano os batizados escassearam até ao zero. De ano para ano também os alunos da escola<br />
de Jaime desapareceram por completo. A igreja fechou, sem fiéis e sem padre. E também<br />
a escola, sem alunos que a justificassem. A aldeia transforma-se num pequeno mundo<br />
de velhos, caquéticos, decrépitos, tresloucados que vão morrendo um a um. E porque o<br />
coveiro também finalmente partira depois de por várias vezes ameaçar fazê-lo, Jaime, que<br />
já não tinha alunos para ensinar, assume as suas funções, condenado à “excessiva grandeza”<br />
de ser o último sobrevivente de um mundo morto, “o coveiro do mundo. Não o carrasco<br />
– o coveiro, o último doador da piedade.” (AB, p. 272).<br />
É nessa situação-limite que a diegese tem início. Jaime e a mulher, Águeda, eram<br />
os últimos sobreviventes da aldeia. Águeda morre e Jaime acaba de fazer o seu enterro:<br />
Enterrei hoje minha mulher – porque lhe chamo minha mulher? Enterrei-a eu<br />
próprio no fundo do quintal, debaixo da velha figueira. Levá-la para o cemitério, e como?<br />
Fica longe. Ela pedira-me uma vez, inesperadamente, acordando-me a meio da noite.<br />
Queria que a enterrasse junto ao muro que dá para o caminho, porque se vê daí a casa<br />
dela. Habituara-se a olhar para aquele sítio depois que ficou só. E pensava: “verei dali a<br />
janela do meu quarto”. Mas teria de transportá-la para lá. Não tenho forças e cai neve. A