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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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133<br />

esse aviso de uma palavra decisiva, essa pureza de uma anunciação da vida. Que tu sejas<br />

apenas esta minha crença profunda que resiste, que perdura, que não morre sob o peso<br />

dos destroços acumulados – não sei. Sei apenas que estou aqui e tu aí, de olhos cerrados,<br />

e a tua mãe vigiando desde toda a eternidade... Sei só que a vida brilha e que é<br />

belo fitá-la. Doloroso aceno de mim para ti, para os homens que conheço, para os homens<br />

que ignoro, milhares, biliões na germinação da Terra, tão distantes uns como outros,<br />

tão próximos uns como outros. Fugitivo enleio de um olhar cego. Porquê o apelo<br />

de mais justificações, de outra e de outra, até à ultima que não há? Tudo sempre tão de<br />

mais... Mas só o que é de mais é que é bastante... (EP, p. 169-170).<br />

Há aqui um eco evidente da cena pungente, tão poética, tão bela e tão dramática da<br />

última visão de Cristina, viva, tida por Alberto em Aparição: a cena da morte da criança<br />

pianista. Se as compararmos, vamos encontrar nas duas a mesma tensão poética, a mesma<br />

exaltação densa e tensamente emocionada 36 . Mas Clarinda sobreviverá até ao final da diegese,<br />

quando o narrador a evoca, juntamente com outras figuras que integraram o seu destino:<br />

“que é feito de ti, Clarinda? Garcia, Emílio, Jeremias, Irene? Clarinda estará só, Jeremias,<br />

meu irmão, terá assassinado a mulher para a amar, para a ter enfim ao seu lado na<br />

comunhão indestrutível” (EP, p. 276). Sobreviverá, mas para estar só, como se não houvesse<br />

outro destino para o ser humano. Tal como Adalberto se encontra só, recolhido à exigüidade<br />

de uma cela, aguardando o momento em que “todas as vozes embatendo nas paredes,<br />

desistirem de embater nas paredes,” que é quando lhe abrirão as portas de novo, e ele<br />

partirá para Penalva, onde provavelmente encontrará Aida, que tem uma irmã extraordinariamente<br />

parecida com ela, até no nome, e que ele será ainda incapaz de distinguir uma da<br />

outra – embora haja um filho entre os dois, mas já morto –, confundindo-as até ao excesso<br />

da morte – porque a morte é o signo do seu excesso –, para ser novamente condenado a<br />

vinte anos, ao fim dos quais lhe voltarão a abrir as portas, se viver ainda. E voltará para<br />

Penalva. Então encontrará Aida que tem uma irmã extraordinariamente parecida com ela.<br />

(EP, p.277).<br />

36 Cf.: Ap, p. 221-222:<br />

Pela madrugada entrei enfim no teu quarto, Cristina. À luz frouxa da lâmpada que rezava ao pé de ti,<br />

vi-te enfim a face branca coroada de ouro. E a certa altura, sem que ninguém mais tivesse visto, só<br />

eu vi, só eu vi, Cristina, as tuas mãos pousadas sobre a dobra do lençol moveram os dedos brevemente.<br />

Era um movimento concertado das duas mãos, mas num ritmo de cansaço final. Na dobra do<br />

lençol tu sentias o teu piano, tu tocavas, Cristina, tu tocavas para ti e para mim. Música do fim, a a-<br />

legria sutil desde o fundo da noite, desde o silêncio da morte.

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