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Jeremias chegava dali a pouco. Um signo de fatalidade marcava-o fundamente. Trazia a<br />
gola do capote erguida com um ar de vigília noturna, os cabelos e as barbas espalhados<br />
à volta. Vinha atender-me, e vinha queixar-se, se pudesse. [...].<br />
O profeta abateu sobre um banco, [...]. Não sabia da pequena, o Dr. Emílio estava<br />
lá com ela. Mas doía-lhe ali, no fundo do cavername, meu irmão, uma coisa, uma coisa...<br />
(EP, p. 148).<br />
Chama-se Clarinda, a filha do “profeta”. Nome sonoro e luminoso, que se pode ler<br />
Clara, a linda, ou Clara e linda. Irradia uma luz desta personagem infantil que desperta no<br />
narrador o mais sensível da sua emoção. Só com o nascimento e com a morte do seu próprio<br />
filho, Adalberto se comove tanto quanto o emociona e transtorna saber doente, e em<br />
risco de vida, aquela criança extremamente pobre, sem recursos para o remédio que a poderia<br />
salvar. Salva-a a solidariedade de Adalberto, que levanta, entre muitos pobres da<br />
m esma condição de Clarinda, o dinheiro para o seu remédio. Também o humanismo pragmático<br />
de Emílio, o médico – um camusiano Rieux 35 – que a interna no hospital de Penalva.<br />
De algum modo, Clarinda recupera em encantamento, beleza e misteriosa poesia, a<br />
Cristina de Aparição. Apesar do negror da sua pobreza de origem (pobreza material, social<br />
e intelectual) e de não ter a seu favor o dom da arte, dádiva e magia com que os genes, o<br />
destino ou os deuses beneficiaram a infantil pianista de Évora, uma luz de maravilha emana<br />
da humildade e do sofrimento de Clarinda. Talvez porque Clarinda não é só o nome<br />
claro de uma clara criança na escuridão de Penalva, mas é também um nome em que ressoa<br />
a música de um mistério. E é esse halo formado por essa luz e essa música que dessa criança<br />
emanam, que alcançam profundamente a emoção de Adalberto, porque ele buscou sempre,<br />
por entre tantos mortos numa cidade espectral, a luz e a vida em plenitude e comunhão,<br />
e agora ali estava, em face de uma inocência que oscila, absurdamente, entre a vida e<br />
a morte.<br />
Sinto-me intimidado, quase trêmulo, sutilizado de súbito numa poalha luminosa que não<br />
é a do quarto nem da imagem de Clarinda nem da imagem da mãe, ali imóvel na perene<br />
figuração da piedade. Porque é outra e mais antiga e indizível a revelação que me deslumbra,<br />
me suspende, me esvazia de todo o peso do que em mim se acumulou. Pequena<br />
verdade nua, tão humilde. Breve união na amargura. Mas que sejas tu a lembrar-ma,<br />
Clarinda – porquê? A que mentira me dou neste silêncio, nesta muda contemplação?<br />
Frágil vida que começa, indício breve de uma esperança de nada – tu, essa esperança,<br />
35 Dr. Rieux, persona gem-médico protagonista de A peste, de Albert Camus.