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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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128<br />

– Estou farta desta comédia. Tive eu a culpa? Tive eu a culpa... Mas que importa?<br />

O meu filho é meu! Não é da outra! É meu! Fui eu que o pari. Dói-te? Pari-o eu!<br />

As palavras são para se usarem. Pari-o. (EP, p. 251, itálicos da citação).<br />

Dali em diante, alguma coisa de extrema e absoluta importância para a harmonia de<br />

Adalberto com a vida ruíra em fragoroso desastre. Vítima de uma confessada fraude, ele<br />

encontrava-se em face de um erro essencial quanto ao outro, e esse “outro” era a sua mu-<br />

do seu filho. Mas o filho morre e com ele desaparece a única razão de continui-<br />

lher, a mãe<br />

dade dessa relação fraudada, mantida, até ali, graças à impossibilidade do verdadeiro co-<br />

também a esperança de comunhão. Portanto Adalberto está<br />

nhecimento do outro, morrendo<br />

definitivamente condenado à completa solidão, e por isso Alda morrerá, não importando se<br />

em conseqüência de um acidente de carro, se por uma falha cardíaca ou se pelas mãos de<br />

Adalberto, num gesto tresloucado do seu desvario. Se efetivamente Adalberto a matou – o<br />

que a rede de ambigüidades do romance não permite esclarecer – teve para isso as razões<br />

da sua justificação: é que, apesar da extraordinária semelhança que em todos os níveis e-<br />

xistia entre ambas, Aida e Alda não eram a mesma pessoa e Aida era exatamente alguém<br />

que Adalberto há muito aborrecera e que se lhe gastara 31 . O julgamento concluiu: se Adal-<br />

31 V. EP, p. 256:<br />

Mas uma letra não se mudava assim. Decerto Aida era a mesma que fora Alda, enquanto eu<br />

a julgava Alda. Decerto a verdade das coisas, é a verdade das coisas [...]. A verdade são os teus o-<br />

lhos, o calor das tuas mãos. Por mais que eu o tentasse, quem dormia agora a meu lado não conseguia<br />

que fosse a pessoa que eu amava, que eu tentara harmonizar com a minha vida, com quem eu<br />

coordenara a minha velha interrogação. Quem dormia comigo era alguém que eu aborrecera, que se<br />

me gastara. (Itálico da citação).<br />

Esta passagem, é o contraponto romanesco ou o eco ficcional de uma densa reflexão sobre a identidade<br />

profunda, filosoficamente colocada como hipótese em Invocação ao meu corpo e que vem a ser, no plano<br />

ensaístico, a própria essência temática do romance:<br />

Imagina que te encontras com alguém que já não vias há muito. Recordas com ele um passado comum.<br />

Todos os elementos de um acerto mútuo estão aí, desde os fatos que ambos recordais até à face<br />

desse alguém, aos seus gestos, à sua voz. Percorrestes pela memória mil acontecimentos comuns,<br />

recuperaste-vos totalmente e mutuamente nesse encontro. Mas eis que ao despedir-vos, esse teu a-<br />

migo te diz que ele não é esse teu amigo mas sim um seu irmão gêmeo. Imediatamente uma altera-<br />

nas vossas relações. Mas se te perguntares em quê, não é fácil responderes.<br />

ção profunda se instalou<br />

Naturalmente dirias que esse teu amigo não era ele, que era outra pessoa. Mas outra em quê? O corpo<br />

é igual nos mínimos pormenores, igual a face e os gestos e a voz e os olhos. Iguais as idéias, os<br />

sentimentos, as recordações, o todo integral de uma vida e do que ela é. Se percorreres todos os<br />

pormenores, encontrá-los-ás em hipótese absolutamente iguais. Começa onde quiseres, examina cada<br />

minúcia que constitui o teu amigo, progride até ao mais extremo limite e verificarás que nada escapa<br />

a uma integral igualdade. Mas se isto é assim, deveria ser-te indiferente seres amigo deste como<br />

eras amigo do outro. Pois se uma pessoa é aquilo que ela nos é, se uma pessoa é aquilo que a<br />

manifesta, se aquilo que nos define é aquilo que somos e se esse alguém que encontramos em nada<br />

difere, em hipótese, do alguém que esperávamos encontrar, nenhuma razão havia para que as rela-<br />

ções com esse alguém se perturbassem. Mas elas perturbam-se, porque esse alguém não é o outro.

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