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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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constante jogo entre o real e o irreal e a própria incapacidade de distinguir um do outro.<br />

Daí que anoiteça ou pareça anoitecer sobre tudo. Que, como numa tela expressionista, toda<br />

a representação se rasure sob um véu de névoa, que as pessoas sejam mais vultos do que<br />

corpos e que a cidade se transforme num labirinto sombrio e fantasmático, onde toda a<br />

caminhada é circular e de onde não existe saída possível. É esta a atmosfera de Estrela<br />

polar. Se Kafka veio a ser, efetivamente, uma das influências no conjunto de romances de<br />

Vergílio Ferreira – como o afirmou o próprio romancista 22 –, é sobretudo a partir deste<br />

romance que isso se torna visível. Desmoronam aqui as estruturas do real e da sua repre-<br />

Ninguém tente procurar aqui o verossímil de uma história ou a lógica<br />

sentação romanesca.<br />

de uma ação sobre a qual o romance se sustente. Porque é o contrário disso que está na<br />

intenção do autor. Em Estrela polar, tudo, de certo modo, se alegoriza, se transforma em<br />

símbolo ou em matéria de pensar. Começa aqui o “romance abstrato” de Vergílio Ferreira,<br />

esse romance da “zona obscura de nós” (IMC, p. 84), da “dimensão original de nós – a<br />

mais profunda ou a mais alta onde o ar rarefeito mal nos deixa respirar, onde a luz nos cega<br />

de esplendor.” ( ibid. p. 83). Nele, não pretende o autor “contar” uma história, mas “presentificar”,<br />

humanamente, um problema do homem. E esse problema transcende qualquer história,<br />

qualquer “psicologia”, qualquer espaço e mesmo qualquer tempo. E aqui estão algumas<br />

das diferenças fundamentais que entre Estrela polar e Aparição se verificam. Porque<br />

se há semelhanças entre os dois romances a ponto de ser um, de algum modo, a continuidade<br />

do outro, as diferenças são muito mais visíveis e quem sabe mesmo mais profundas.<br />

Em Aparição, visíveis as intenções filosóficas do romance, o seu evidente parentesco<br />

com a literatura existencial que facilmente conduziria ao rótulo de romance “existencialista”,<br />

subsiste ainda uma diegese calcada sobre fatos narráveis componentes da ação, da<br />

qual participam personagens construídas a partir da observação da realidade social e humana<br />

da aldeia beirã e de Évora – desta, principalmente –, até mesmo a partir de modelos<br />

23<br />

vivos, como tem demonstrado alguma crítica . Não obstante a peculiar concepção de tem-<br />

po/espaço romanescos construída sobre um jogo de alternâncias sugestivo de uma memória<br />

que relembra emocionada e à distância de vinte anos, para a emoção da escrita o conteúdo<br />

22 V. FERREIRA, Vergílio. Para uma auto-análise literária. In: _____ . Espaço do invisível II. Lisboa: Arcádia,<br />

1976, p. 9-19. Cf. também: Kafka, uma estética do sonho. Id., ibidem, p. 225-234.<br />

23 A propósito, veja-se o ensaio de Fernando Martinho “Évora em Aparição de Vergílio Ferreira”. In: CANIATO, Benilde Justo;<br />

o livro já citado de Maria Joaquina Nobre Júlio, Aparição: subsídios para uma leitura<br />

MINÉ, Elza (coordenação e edição). Abrindo caminhos: homenagem a Maria Aparecida Santilli. São Paulo:<br />

Área de Pós-Graduação de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa [USP], 2002, p.<br />

123-133. Coleção Via Atlântica, nº 2.

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