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constante jogo entre o real e o irreal e a própria incapacidade de distinguir um do outro.<br />
Daí que anoiteça ou pareça anoitecer sobre tudo. Que, como numa tela expressionista, toda<br />
a representação se rasure sob um véu de névoa, que as pessoas sejam mais vultos do que<br />
corpos e que a cidade se transforme num labirinto sombrio e fantasmático, onde toda a<br />
caminhada é circular e de onde não existe saída possível. É esta a atmosfera de Estrela<br />
polar. Se Kafka veio a ser, efetivamente, uma das influências no conjunto de romances de<br />
Vergílio Ferreira – como o afirmou o próprio romancista 22 –, é sobretudo a partir deste<br />
romance que isso se torna visível. Desmoronam aqui as estruturas do real e da sua repre-<br />
Ninguém tente procurar aqui o verossímil de uma história ou a lógica<br />
sentação romanesca.<br />
de uma ação sobre a qual o romance se sustente. Porque é o contrário disso que está na<br />
intenção do autor. Em Estrela polar, tudo, de certo modo, se alegoriza, se transforma em<br />
símbolo ou em matéria de pensar. Começa aqui o “romance abstrato” de Vergílio Ferreira,<br />
esse romance da “zona obscura de nós” (IMC, p. 84), da “dimensão original de nós – a<br />
mais profunda ou a mais alta onde o ar rarefeito mal nos deixa respirar, onde a luz nos cega<br />
de esplendor.” ( ibid. p. 83). Nele, não pretende o autor “contar” uma história, mas “presentificar”,<br />
humanamente, um problema do homem. E esse problema transcende qualquer história,<br />
qualquer “psicologia”, qualquer espaço e mesmo qualquer tempo. E aqui estão algumas<br />
das diferenças fundamentais que entre Estrela polar e Aparição se verificam. Porque<br />
se há semelhanças entre os dois romances a ponto de ser um, de algum modo, a continuidade<br />
do outro, as diferenças são muito mais visíveis e quem sabe mesmo mais profundas.<br />
Em Aparição, visíveis as intenções filosóficas do romance, o seu evidente parentesco<br />
com a literatura existencial que facilmente conduziria ao rótulo de romance “existencialista”,<br />
subsiste ainda uma diegese calcada sobre fatos narráveis componentes da ação, da<br />
qual participam personagens construídas a partir da observação da realidade social e humana<br />
da aldeia beirã e de Évora – desta, principalmente –, até mesmo a partir de modelos<br />
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vivos, como tem demonstrado alguma crítica . Não obstante a peculiar concepção de tem-<br />
po/espaço romanescos construída sobre um jogo de alternâncias sugestivo de uma memória<br />
que relembra emocionada e à distância de vinte anos, para a emoção da escrita o conteúdo<br />
22 V. FERREIRA, Vergílio. Para uma auto-análise literária. In: _____ . Espaço do invisível II. Lisboa: Arcádia,<br />
1976, p. 9-19. Cf. também: Kafka, uma estética do sonho. Id., ibidem, p. 225-234.<br />
23 A propósito, veja-se o ensaio de Fernando Martinho “Évora em Aparição de Vergílio Ferreira”. In: CANIATO, Benilde Justo;<br />
o livro já citado de Maria Joaquina Nobre Júlio, Aparição: subsídios para uma leitura<br />
MINÉ, Elza (coordenação e edição). Abrindo caminhos: homenagem a Maria Aparecida Santilli. São Paulo:<br />
Área de Pós-Graduação de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa [USP], 2002, p.<br />
123-133. Coleção Via Atlântica, nº 2.