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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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120<br />

Aqui, neste quarto nu em que escrevo, relembro agora tudo com emoção. À dor do que<br />

passei mistura-se incrivelmente uma saudade irremediável para nunca mais, não bem<br />

concretamente, por este instante ou aquele, mas apenas porque a tudo envolve um halo<br />

estranho, agora que tudo me vive na memória. Ao relembrar o passado acodem-me su-<br />

bitamente instantes únicos de uma chuva correndo largamente nas vidraças, ou de um<br />

sol carinhoso no fumo largo da manhã ou até mesmo de uma madrugada fria na igreja.<br />

Mas que houve realmente, nesses instantes, que me tivesse comovido? Eis porque eu me<br />

perturbo à memória da noite de Natal em que todavia eu sei que sofri de fadiga e de tristeza.<br />

[...].<br />

Estranho poder este da lembrança: tudo o que me ofendeu me ofende, tudo o que<br />

me sorriu sorri: mas a um apelo de abandono, a um esquecimento real, a bruma da distância<br />

levanta-se-me sobre tudo, acena-me à comoção que não é alegre nem triste mas<br />

apenas comovente... Dói-me o que sofri e recordo, não o que sofri e evoco. (MS, p. 82 e<br />

83).<br />

*<br />

Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de verão entra pela<br />

varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. Olho essa jarra, essas flores, e escuto<br />

o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens. [...].<br />

Nesta casa enorme e deserta, nesta noite ofegante, neste silêncio de estalactites, a lua<br />

sabe a minha voz primordial. (Ap, p. 9 – itálicos do texto citado).<br />

Escrevo à luz mortal deste silêncio lunar, batido pelas vozes do vento, num casarão vazio.<br />

Habita-me o espaço e a desolação. (Ibid., p. 24).<br />

Conto tudo, como disse, à distância de alguns anos. Neste vasto casarão, tão vivo<br />

um dia e agora deserto, o outrora tem uma presença alarmante e tudo quanto aconteceu<br />

emerge dessa vaga das eras como uma estranha face intocável e solitária. Mas os elos de<br />

ligação entre os fatos que narro é como se se diluíssem num fumo de neblina e ficassem<br />

só audíveis, como gritos, que todavia se respondem na unidade do que sou, os ecos angustiantes<br />

desses fatos em si – padrões de uma viagem que já mal sei. (Ibid.).<br />

A minha vida assinala-se em breves pontos de referência. Mas esses pontos, como os de<br />

uma constelação, abrem-se ao que ressoa como música de esferas, vêm de longe até<br />

mim não no que os concretiza mas na névoa que os esbate como um murmúrio de nada.<br />

[...]. São vozes que me chamam dos quatro cantos do espaço e eu não ouço senão<br />

quando a aura das horas mas lembra. Daí que me acusem por vezes de “retórico”. Ainda<br />

um dia hei-de falar desse equívoco da “retórica”. [...]. A retórica pode não separar um<br />

autor de si próprio: separa-nos a nós dele, quando o não aceitamos. A própria vida será<br />

retórica para aquele que está morto... Hei-de falar disto aos meus alunos. [...]. A minha<br />

retórica vem do desejo de prender o que me foge, de contar aos outros o que ainda não<br />

tem<br />

nome e onde as palavras se dissipam com a névoa do que narram. (Ibid., p. 83-84).

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