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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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119<br />

Desde Manhã submersa, passando por Aparição e chegando a Estrela polar, o roconfigurando-se<br />

como narrativa que teoriza sobre a narrativa. O processo da mise-en-<br />

manesco em Vergílio Ferreira caracteriza-se, entre outras coisas, pela metanarratividade,<br />

abyme, esse mergulho num texto ou situação que implica outro ou outra e que pode ser<br />

levado até ao cansaço, foi sempre de grande fascínio para o escritor. Para exemplificar,<br />

basta relembrar:<br />

entrecruzada se justificará pelos saltos da memória, que nunca recorda nada em tal seqüência linear,<br />

mas com suspensões, retornos, antecipações sobre o que se está memorizando. (Cf. Um escritor a-<br />

presenta-se. In: Espaço do invisível IV, p. 30).<br />

Esta “distribuição embrechada” da matéria narrativa, com o conseqüente “entrecruzamento de séries temporais<br />

e espaciais” foi aproximada por Maria Lúcia Dal Farra – sobretudo quanto aos romances Estrela polar,<br />

Alegria breve e Nítido nulo – do processo interseccionista desenvolvido por Fernando Pessoa no poema<br />

“Chuva oblíqua”. Processo que ela assim descreve, socorrendo-se de Maria Aliete Galhoz:<br />

o interseccionismo é um “complexo de vivências interferindo-se porque chamadas ao campo do<br />

consciente com a mesma solicitação de únicas. Daí, as intersecções psíquicas de tempos, de espaços,<br />

e de realidades exteriores e subjetivas. Dos vários planos, um real e outros imaginários, ainda que<br />

todos concebidos só no cérebro, desencadeiam na receptividade emotiva do poeta um nexo de correspondências<br />

visionariamente expressas.” (GALHOZ, Maria Aliete. O momento poético do Orpheu.<br />

In: Orpheu. 2ª. reed., Lisboa: Ática, 1971, v. 1, p. xxxvi. Apud DAL FARRA, Maria Lúcia. O<br />

narrador ensimesmado (o foco narrativo em Vergílio Ferreira). São Paulo: Ática, 1978, p. 110).<br />

A descrição do pessoano “processo” interseccionista reflete bem o que, em V. F., desde Aparição<br />

– evoluindo para Estrela polar e daí para romances futuros, como Alegria breve e Nítido nulo – são causa e<br />

conseqüência das freqüentes alternâncias espácio-temporais que caracterizam não só a sua concepção de<br />

tempo e de espaço romanescos, mas o seu “modo” de escrita ou o seu estilo, e a estruturação da sua narrativa.<br />

Embora por várias vezes e em diferentes lugares textuais o romancista tenha declarado o seu pequeno<br />

ou nenhum entusiasmo por Fernando Pessoa (de que dão testemunho as freqüentes referências que o romancista<br />

lhe faz, em vários ensaios e ao longo do seu diário, sempre carregadas de restrições), não se pode<br />

ignorar nele a presença do poeta dos heterônimos. Sobretudo em Aparição é possível encontrarem-se ressonâncias<br />

da escrita de Álvaro de Campos (v., p. ex., à p. 127 da edição aqui utilizada, a seqüência “eu, que<br />

não tenho um Deus que me justifique e redima, eu, que luto há tanto tempo [...], eu que sonho com o reinado<br />

integral do homem na terra da sua condenação e grandeza [...]” que traz reminiscência do Campos da<br />

“Passagem das horas”). Também em Ap, a expressão “anônima e dispersa” (p. 282), ecoada de “O Bandarra”,<br />

de Mensagem (“Sonhava, anônimo e disperso,”) ou a imagem “a multidão ferve rodando em torno de<br />

si, como se toda a feira fosse um enorme carrocel” (sic, p. 282), sem dúvida oriunda da parte V de “Chuva<br />

oblíqua” (“Lá fora vai um redemoinho de sol, os cavalos do carrousel... / [...] / Cruzam-se com grandes<br />

grupos peganhentos de gente que anda na feira. / Gente toda misturada com as luzes das barracas, com a<br />

noite e com o luar, / [...] / A feira e as luzes da feira e a gente que anda na feira,”). Em Estrela polar, as falas<br />

de Adalberto “– Quem nos está fitando? perante quem somos? [...]” (p. 82) e “quem me abre a porta de<br />

ti, para eu ser tu sendo eu? Que eu saiba o que pensas e sentes – mas como ser tu a pensar e sentir?” (p.<br />

234) podem ecoar (e decerto ecoam) os versos de Pessoa “De quem é o olhar / Que espreita nos meus o-<br />

lhos?” (“A múmia – III”), e, “Ah, poder ser tu, sendo eu! / Ter a tua alegre inconsciência, / E a consciência<br />

disso!” (“Ela canta, pobre ceifeira”). Relativamente a vários aspectos de possíveis aproximações entre V.<br />

F. e F. P., sempre me pareceu que, em Aparição, Tomás, na sua absoluta tranqüilidade, tal como Alberto<br />

Caeiro, está certo com a vida e com a morte, com a natureza, o campo e toda a ordem cósmica, e por isso<br />

não questiona o impossível, enquanto Alberto, tal como Álvaro de Campos, vive e sofre o desassossego de<br />

uma angústia visceral e absoluta. Tomás é um campônio (como Caeiro), Alberto é um letrado, um intelectual<br />

(como Campos e Reis e como estes tem o “vício” do pensar). Eduardo Lourenço diz em algum lugar<br />

que V. F. deve ter lido Albert Camus mais do que o admitiu. Penso que o mesmo se pode dizer com rela-<br />

ção a Pessoa.

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