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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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114<br />

*<br />

– [...]. E ouve uma coisa: tens pintado?<br />

[...]<br />

– Porque é que não me perguntas se tenho respirado? Essa macaquice de falar<br />

da arte como de uma coisa a mais. Não há em mim nada a mais.<br />

[...].<br />

– Mas então eu pinto porquê? Por comédia? Para fazer figura? Para deixar um<br />

nome? Julgas-me assim um palhaço? Mas nunca ninguém me perguntou por que é que<br />

respiro. (Ibid., p. 175).<br />

Mas virá um dia em que Alberto entenderá essa dupla fúria de Garcia, a de pintar e<br />

a dos seus impropérios contra os outros e até contra si próprio. Ou talvez a entendesse desde<br />

sempre:<br />

Garcia atirou-se à arte como nunca. Pintava com raiva pelas noites de inverno – o inverno<br />

viera cedo, as tardes bruscas apagavam a cidade, erguiam-na aos astros, à perenidade<br />

da sua solidão, coitado do Garcia. Mais do que nunca eu percebia agora que ele amava a<br />

Arte com um amor desesperado, que todos os seus insultos à “metafísica”, à “vitória sobre<br />

o destino”, “à verdade divina da arte”, eram a forma do seu amor raivoso, de uma<br />

pureza que defendia contra a pobre parolice, contra a fácil emotividade. Gravado de solidão,<br />

no abandono longo do inverno, pintava sempre e sempre, defendendo-se com o<br />

insulto do que julgava um insulto, fechava-se no seu sonho como num amor desgraçado.<br />

(Ibid. p. 212-213).<br />

Garcia pinta para vencer a solidão, ultrapassá-la em comunhão com a Arte. Pinta<br />

pelas mesmas razões que levaram Adriano a apostar a vida numa ação decisiva que a resumisse,<br />

ou Mário a justificar a existência restaurando e decorando uma capela, ou Elsa,<br />

que dança para esgotar a vida e a arte num instante, ou Alberto a testemunhar em escrita a<br />

sua experiência da aparição. Mário afirma que pintar é o seu modo de “estar vivo”; Alberto<br />

diz que escreve “para ser”, para segurar nas suas mãos “inábeis o que fulgurou e morreu”;<br />

o próprio Vergílio Ferreira diz também que escreve “para estar vivo”; Garcia diz que<br />

pinta para si, “porque é bom pintar”, pinta pelas mesmas razões por que respira, porque lhe<br />

é absolutamente necessário para continuar vivendo 19 . E por isso não lhe interessa se todo o<br />

19 Cf. Cântico final, p. 11 e 65; Aparição, p. 209-210; Um escritor apresenta-se, p. 183-184; e Estrela polar,<br />

p. 116 e 175. Respondendo numa entrevista à pergunta “por que razão escreve?”, disse V. F.: “Nunca per-

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