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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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A transcrição deste fragmento do ensaio comprova o contínuo “diálogo” em que o<br />

escritor faz interagir a criação romanesca, a reflexão ensaística, e, mais adiante, a anotação<br />

diarística – também predominantemente de caráter reflexivo. Na verdade, os grandes temas<br />

de Vergílio Ferreira estão sempre presentes no romance, no ensaio e no diário. E mesmo o<br />

“tom” é quantas vezes idêntico, senão o mesmo. Observe-se que o do fragmento transcrito<br />

não é tão dessemelhante do que se transcreveu de Estrela polar. Em Invocação ao meu<br />

corpo há inúmeras passagens que parecem ter sido “recuperadas” de Aparição, desde um<br />

evidente traço de comoção poética, à voz da qual emana essa comoção e que flagrantemente<br />

se manifesta em “atitude de escrita”.<br />

Voltando à cena do romance em que Garcia e Emílio dialogam, repare-se que é um<br />

artista – o pintor Garcia – que defende a idéia de que o mundo morre com a morte do ho-<br />

de criação artística. Porque se o mundo<br />

mem, o que torna absurdo o seu próprio trabalho<br />

morrerá consigo, para quê ou para quem pintará ele, então? É exatamente essa a pergunta<br />

que o próprio Garcia se faz, colocando-se na perspectiva de Adalberto:<br />

– Mas agora dir-me-ás tu – rompeu inesperadamente Garcia – se o tipo aceita<br />

que a morte é realmente o fim de tudo, para que diabo pinta ele? Ah!<br />

E ficou com todo o seu riso cá fora, gozando a objeção, deixando-a durar um<br />

pouco, para reforçar o prazer de a liquidar logo a seguir.<br />

– Pinto para mim, hem? Pinto para mim. À merda todos os que acreditam na<br />

imortalidade. Deixa-me sentar um pouco para me rir. (EP, p. 115-116).<br />

Noutras seqüências o tema continua a ser tratado em conversas entre Adalberto e Garcia:<br />

– Pinto porque é bom pintar, como comer e o contrário. A minha ambição suprema<br />

era que depois de morto eu fosse verdadeiramente nada. Mas preciso viver e<br />

vendo quadros, e os quadros ficam, e há-de haver cretinos que hão-de olhar para eles.<br />

Bom, se fosse só isso, se só olhassem para os quadros, que é o que interessa... Mas não.<br />

Hão-de dizer que os quadros eram de um tal Garcia que era um tipo [...].<br />

– Mas depois de morreres, o mundo não existe.<br />

– Ora aí está: que vale a gente explicar-se? O homem é de sua essência muito<br />

burro. É assim, coitado. Tu estás a falar com um morto?<br />

– Estou a falar com um vivo para depois de morto.<br />

[...].<br />

No entanto, acreditava em tudo o que Garcia dissera. Sabia que a morte de um<br />

homem era a morte do Universo – não o dissera eu a Emílio? (Ibid., p. 116-117).

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