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A transcrição deste fragmento do ensaio comprova o contínuo “diálogo” em que o<br />
escritor faz interagir a criação romanesca, a reflexão ensaística, e, mais adiante, a anotação<br />
diarística – também predominantemente de caráter reflexivo. Na verdade, os grandes temas<br />
de Vergílio Ferreira estão sempre presentes no romance, no ensaio e no diário. E mesmo o<br />
“tom” é quantas vezes idêntico, senão o mesmo. Observe-se que o do fragmento transcrito<br />
não é tão dessemelhante do que se transcreveu de Estrela polar. Em Invocação ao meu<br />
corpo há inúmeras passagens que parecem ter sido “recuperadas” de Aparição, desde um<br />
evidente traço de comoção poética, à voz da qual emana essa comoção e que flagrantemente<br />
se manifesta em “atitude de escrita”.<br />
Voltando à cena do romance em que Garcia e Emílio dialogam, repare-se que é um<br />
artista – o pintor Garcia – que defende a idéia de que o mundo morre com a morte do ho-<br />
de criação artística. Porque se o mundo<br />
mem, o que torna absurdo o seu próprio trabalho<br />
morrerá consigo, para quê ou para quem pintará ele, então? É exatamente essa a pergunta<br />
que o próprio Garcia se faz, colocando-se na perspectiva de Adalberto:<br />
– Mas agora dir-me-ás tu – rompeu inesperadamente Garcia – se o tipo aceita<br />
que a morte é realmente o fim de tudo, para que diabo pinta ele? Ah!<br />
E ficou com todo o seu riso cá fora, gozando a objeção, deixando-a durar um<br />
pouco, para reforçar o prazer de a liquidar logo a seguir.<br />
– Pinto para mim, hem? Pinto para mim. À merda todos os que acreditam na<br />
imortalidade. Deixa-me sentar um pouco para me rir. (EP, p. 115-116).<br />
Noutras seqüências o tema continua a ser tratado em conversas entre Adalberto e Garcia:<br />
– Pinto porque é bom pintar, como comer e o contrário. A minha ambição suprema<br />
era que depois de morto eu fosse verdadeiramente nada. Mas preciso viver e<br />
vendo quadros, e os quadros ficam, e há-de haver cretinos que hão-de olhar para eles.<br />
Bom, se fosse só isso, se só olhassem para os quadros, que é o que interessa... Mas não.<br />
Hão-de dizer que os quadros eram de um tal Garcia que era um tipo [...].<br />
– Mas depois de morreres, o mundo não existe.<br />
– Ora aí está: que vale a gente explicar-se? O homem é de sua essência muito<br />
burro. É assim, coitado. Tu estás a falar com um morto?<br />
– Estou a falar com um vivo para depois de morto.<br />
[...].<br />
No entanto, acreditava em tudo o que Garcia dissera. Sabia que a morte de um<br />
homem era a morte do Universo – não o dissera eu a Emílio? (Ibid., p. 116-117).