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– O mundo morre realmente quando eu morrer. Não é uma metáfora: é a positiva<br />
verdade, hem? Morre mesmo.<br />
E Emílio declarava que, portanto, se precisasses de fazer testamento, tu não farias<br />
nunca testamento.<br />
– Mas exatamente porque o mundo não existe depois de eu morrer é que faço<br />
testamento enquanto vivo. Bom, não faço, já se vê. Mas se fizesse, fazia. Se o mundo<br />
existisse depois de eu morrer, podia fazer testamento depois de morto, porque ainda ia<br />
muito a tempo.<br />
– Sabes portanto que o mundo existe quando estiveres morto.<br />
– Sei-o enquanto estiver vivo, sei-o agora. Por isso é que fazia agora testamento.<br />
Só se admite que o mundo existe depois de morrermos, precisamente porque estamos<br />
vivos, porque nos estamos sentindo vivos para depois de mortos. Para que o mundo e-<br />
xista, é preciso que eu esteja vivo. (EP, p. 106-107, itálicos do texto citado).<br />
Presente à cena, Adalberto acompanha em silêncio e com fadiga a conversa dos<br />
dois: “Já mal os ouço – as próprias razões entretêm-nos, como crianças brincando sobre<br />
um precipício.” (ibid.).<br />
A questão aqui levantada em termos de diálogo ficcional, surge e ressurge com alguma<br />
freqüência nas reflexões ensaísticas do escritor. Assim, por exemplo, em Invocação<br />
ao meu corpo, o mesmo problema, que é o do destino do artista e da sua arte frente à vida e<br />
frente à morte, é tratado assim:<br />
a sua arte pode perdurar pelos séculos, mas o artista, simplesmente, pequenamente, morre.<br />
Pensar que o seu nome perdurará com ela, só o pode iludir enquanto vivo. De dentro<br />
da vida ele se ressuscita para depois da morte como se pudesse ressuscitar-se. De dentro<br />
da vida ele recolhe previamente a sua presença na obra de arte que os vindouros aí lhe<br />
hão-de localizar. De dentro da vida ele se julga vivo para quando já vivo não for. Mas se<br />
a arte não morre, morrerá ele próprio e portanto também a sua arte. É de fora da vida<br />
que ele tem de pensar-se presente na sua obra, ou seja quando presente já não está. Ter<br />
ou não construído uma obra, não é indiferente enquanto nela se projeta do lado de cá da<br />
morte; mas é perfeitamente igual quando estiver do lado de lá, ou seja, quando não esti-<br />
Estendemos a nossa responsabilidade para lá da morte e por isso dela decidimos<br />
ver.<br />
como de todos os atos da vida; mas a posse lá do que fizemos cá. Assim o absoluto da<br />
Arte exig e um absoluto em que se integre o próprio artista. (IMC, p. 232, itálicos da citação).