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retratos já nada sei. São esses que eu fito com mais angústia. Têm olhos espantados ou<br />
risonhos ou sérios. Que medos, que sonhos, que virtudes lhes inventaram a vida em e-<br />
ternidade? Mas vós estais mortos e ninguém vos julga e ninguém vos ouve. Que sei, porém,<br />
de vós outros, meus amigos? [...]. Sim, eu te lembro na voz da tia Dulce. E tu, boa<br />
moça de peito armado em folhos e cordões? Eras filha de... Já não sei. Mas não casaste,<br />
tia Dulce o disse. [...]. Frágeis fios destas imagens amarelecidas, convergindo para mim,<br />
para a minha memória cansada presos do futuro por uma breve referência, uma nota,<br />
uma etiqueta. Terei um filho talvez. Eu lhe contarei o que sei de vós. Mas o esquecerá<br />
talvez, ou o filho do meu filho, ou o filho do filho do meu filho. Então aparecereis num<br />
recanto do sótão, absurdos, incríveis, inquietantes, com uma face a falar ainda, como o<br />
olhar de um cão que nos fita, nos procura, e que o silêncio de permeio e que um vidro<br />
de permeio separam irremediavelmente de nós. (Ap, p. 207-208).<br />
Tia Dulce e o seu álbum de fotografias, tal como outras imagens e símbolos deste e<br />
de outros romances de Vergílio Ferreira, têm antecedentes em obras anteriores. A memória<br />
pela fotografia virá também a ser uma constante na obra do escritor. Tia Dulce e o seu álbum<br />
já estão antecipados numa passagem de Apelo da noite em que Rute perscruta o seu<br />
nebuloso passado familiar e procura estabelecer semelhanças fisionômicas com os seus<br />
ancestrais.<br />
Mas eis que certo dia, uma descoberta extraordinária a surpreendera e vexara.<br />
Havia um velho álbum, Rute descobrira-o entre os despojos da casa, quando a mãe lhe<br />
morrera. A mãe estimava-o, ciosa e secreta – eram os pais, e tios, e parentes, amarelecidos<br />
da morte.<br />
Ora, um dia Adriano pôs-se a passar com Rute as folhas do velho álbum. Era<br />
um prazer vicioso, esse de tocar com as mãos o breve rastro da gente que fora. Porque<br />
no fundo – como um retrato, uma carta, provavam absurdamente que o passado existira.<br />
Bruscamente, porém, quando Rute voltava uma folha, Adriano travou-lhe a mão, fitando,<br />
surpreso, uma estranha fotografia. Era de uma jovem vigorosa, de peito alto, fechada<br />
de cinta, um volume caudaloso de saias sopradas nas ancas.<br />
– Quem é esta senhora, Rute?<br />
– Uma tia-avó. Ou bisavó – disse ela distraída. – Matou-se aos vinte anos, contava<br />
minha mãe. (AN, p. 139-140).<br />
A retomada deste motivo temático ou simbólico é mais ou menos evidente. O álbum<br />
de retratos, seja o da tia Dulce, seja o da mãe de Rute, é o símbolo da constante presença<br />
do passado, de um tempo que se esfuma na incerteza do parentesco: Dulce é uma tia-