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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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105<br />

tu eras alguma coisa mais do que um boneco, eu o sei. Ainda que tu mesma talvez o não<br />

soubesses. Porque em ti vivia a fascinação do tempo, o sinal do que nos transcende. Assim<br />

eu esqueço esse teu intransigente apetite, as más digestões conseqüentes [...], a tua<br />

boca aguçada em conveniência, [...] as tuas intrigas com as criadas, [...] a ganância com<br />

que defendias o teu pecúlio de tostões, [...] – assim eu esqueço tudo, e o que te resume,<br />

boa mulher, é esse teu velho álbum de fotografias, que tanta vez me explicaste por saberes<br />

que eu conhecia já a vertigem do tempo e me legaste depois “para o guardar” e eu<br />

tenho agora aqui na minha frente como espectro das eras e das gentes que já mal sei e<br />

me fitam ainda do lado de lá da vida e me querem falar sem poderem e me angustiam<br />

como o olhar humano do Mondego dias antes de o António o matar. (Ap, p. 52-53).<br />

O álbum de fotografias da tia Dulce vem muitas vezes às mãos e à memória de Al-<br />

no decorrer dos acontecimentos de Évora – posteriormente matéria da<br />

berto. Às suas mãos<br />

sua narrativa – e mesmo já antes deles, de mistura com as histórias que a tia lhe contava na<br />

infância. À sua memória ou à sua emoção, no decorrer da escrita em que, fragmentária e<br />

nebulosamente tenta recuperar um passado e o essencial de uma experiência que está nele.<br />

Quando em Évora, logo após a mudança para a casa do Alto e durante as arrumações<br />

para a sua instalação nela, o velho álbum lhe veio parar às mãos entre vários outros<br />

livros, foi como que para significar que, a sós consigo e com o seu passado e a sua memória<br />

familiar, uma outra etapa da sua vida se iniciaria ali. Refugiado naquela casa longe da<br />

cidade contra uma certa animosidade que dali sentia crescer sobre si, é na memória ancestral<br />

que Alberto parece encontrar algum amparo:<br />

Subitamente, no meio da confusão da livralhada, descubro o álbum da tia Dulce.<br />

Estou cansado e sento-me. É um álbum velho, pesado como o tempo. A capa arredonda-se<br />

em almofada, com uma dama antiga, em tons verdes e brancos, segurando no<br />

regaço um leque fechado. [...]. As folhas cartonadas só se passam devagar; e em cada<br />

face de folha, só um ou dois retratos. Vida efêmera. Tão breve. E aí, o sonho invencível<br />

da solidez, de uma unicidade eterna. Retrato de grupo há só um. Mas as figuras não estão<br />

centradas para um ponto único, não nos olham nem se olham, altivas na sua independência.<br />

Viram-se para a esquerda e para a direita, para o alto, para a frente, num desafio<br />

arrogante. Cerro os olhos e sei de novo que toda esta gente morreu. Mas o que<br />

mais me perturba é pensar que o rastro dessa gente está suspenso de mim. Porque eu tenho<br />

ainda uma pequena notícia da sua vida, o eco apagado do que foi a massa complexa<br />

do seu ser e sentir. Tia Dulce contou-me. E foi como se ela própria se dobrasse à piedade<br />

por essa gente desaparecida e quisesse que alguma coisa perdurasse. Mas de muitos

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