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105<br />
tu eras alguma coisa mais do que um boneco, eu o sei. Ainda que tu mesma talvez o não<br />
soubesses. Porque em ti vivia a fascinação do tempo, o sinal do que nos transcende. Assim<br />
eu esqueço esse teu intransigente apetite, as más digestões conseqüentes [...], a tua<br />
boca aguçada em conveniência, [...] as tuas intrigas com as criadas, [...] a ganância com<br />
que defendias o teu pecúlio de tostões, [...] – assim eu esqueço tudo, e o que te resume,<br />
boa mulher, é esse teu velho álbum de fotografias, que tanta vez me explicaste por saberes<br />
que eu conhecia já a vertigem do tempo e me legaste depois “para o guardar” e eu<br />
tenho agora aqui na minha frente como espectro das eras e das gentes que já mal sei e<br />
me fitam ainda do lado de lá da vida e me querem falar sem poderem e me angustiam<br />
como o olhar humano do Mondego dias antes de o António o matar. (Ap, p. 52-53).<br />
O álbum de fotografias da tia Dulce vem muitas vezes às mãos e à memória de Al-<br />
no decorrer dos acontecimentos de Évora – posteriormente matéria da<br />
berto. Às suas mãos<br />
sua narrativa – e mesmo já antes deles, de mistura com as histórias que a tia lhe contava na<br />
infância. À sua memória ou à sua emoção, no decorrer da escrita em que, fragmentária e<br />
nebulosamente tenta recuperar um passado e o essencial de uma experiência que está nele.<br />
Quando em Évora, logo após a mudança para a casa do Alto e durante as arrumações<br />
para a sua instalação nela, o velho álbum lhe veio parar às mãos entre vários outros<br />
livros, foi como que para significar que, a sós consigo e com o seu passado e a sua memória<br />
familiar, uma outra etapa da sua vida se iniciaria ali. Refugiado naquela casa longe da<br />
cidade contra uma certa animosidade que dali sentia crescer sobre si, é na memória ancestral<br />
que Alberto parece encontrar algum amparo:<br />
Subitamente, no meio da confusão da livralhada, descubro o álbum da tia Dulce.<br />
Estou cansado e sento-me. É um álbum velho, pesado como o tempo. A capa arredonda-se<br />
em almofada, com uma dama antiga, em tons verdes e brancos, segurando no<br />
regaço um leque fechado. [...]. As folhas cartonadas só se passam devagar; e em cada<br />
face de folha, só um ou dois retratos. Vida efêmera. Tão breve. E aí, o sonho invencível<br />
da solidez, de uma unicidade eterna. Retrato de grupo há só um. Mas as figuras não estão<br />
centradas para um ponto único, não nos olham nem se olham, altivas na sua independência.<br />
Viram-se para a esquerda e para a direita, para o alto, para a frente, num desafio<br />
arrogante. Cerro os olhos e sei de novo que toda esta gente morreu. Mas o que<br />
mais me perturba é pensar que o rastro dessa gente está suspenso de mim. Porque eu tenho<br />
ainda uma pequena notícia da sua vida, o eco apagado do que foi a massa complexa<br />
do seu ser e sentir. Tia Dulce contou-me. E foi como se ela própria se dobrasse à piedade<br />
por essa gente desaparecida e quisesse que alguma coisa perdurasse. Mas de muitos