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JOS RODRIGUES DE PAIVA

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103<br />

Biliões e biliões de homens pelo espaço dos milénios e tu só, presente, a memória disso<br />

tudo e a dizê-la... (Ap, p. 41-42).<br />

Cristina será constantemente evocada e invocada por Alberto ao longo da sua narra-<br />

do protagonista-narrador, sentido como um abalo ou um alar-<br />

tiva. O espanto maravilhado<br />

me diante da graça, da vida e da arte da criança surgida como a aparição fulgurante de um<br />

ser excepcionalmente superior e puro e elevado e transcendente a tudo quanto representava<br />

um mundo rasteiro e mesquinho, tende a mitificar a destinatária do seu olhar e pensar e<br />

sentir profundamente e quase violentamente emocionados. Sobretudo depois da irremediável<br />

ausência desse ser excepcional, da sua perda irreparável, da sua morte absurda e inaceitável.<br />

Pela saudade e pela reminiscência comovida da graça e da arte de Cristina, se vai<br />

formando, ao longo do tempo e numa sensibilidade intensamente comovida que se corpori-<br />

Cristina morrerá cedo, aos sete anos, vitimada por um absurdo acidente automobi-<br />

na infância, não será contaminada pelos excessos da existência.<br />

lístico. Sagrada pela morte<br />

Viverá sempre na memória de Alberto como a imagem da pureza e da plenitude, um absofugaz<br />

de arte graciosa e gentil, para sempre associada à emoção da músi-<br />

luto fulgurante e<br />

ca, ao seu mágico poder de transfiguração. Pura emoção, também ela sem tempo e sem<br />

lugar perdurando para além da vida e da morte. “Morre jovem o que os deuses amam” é<br />

um preceito da sabedoria antiga aplicável ao precoce desaparecimento de Cristina, morta<br />

em pureza, preservada a face inocente e misteriosa da infância. Cristina morre jovem para<br />

ser perfeita. Para sempre jovem. Para sempre pura. Para sempre música na memória de<br />

Alberto. Cristina era um ser musical, desde o nome, desde a vida e até à morte. É essa a<br />

imagem que dela fica na memória emocionada de Alberto que, por entre a penumbra do<br />

quarto do hospital, retém comovido o seu último instante, o seu último movimento:<br />

Pela madrugada entrei enfim no teu quarto, Cristina. À luz frouxa da lâmpada<br />

que rezava ao pé de ti, vi-te enfim a face branca coroada de ouro. E a certa altura, sem<br />

que ninguém mais tivesse visto, só eu vi, só eu vi, Cristina, as tuas mãos pousadas sobre<br />

a dobra do lençol moveram os dedos brevemente. Era um movimento concertado das<br />

duas mãos, mas num ritmo de cansaço final. Na dobra do lençol tu sentias o teu piano,<br />

tu tocavas, Cristina, tu tocavas para ti e para mim. Música do fim, a alegria sutil desde o<br />

fundo da noite, desde o silêncio da morte. E eu ta ouço ainda agora, Cristina, gelado à<br />

lua verde deste março na montanha, entre o vago deserto que alastra à minha volta e este<br />

úmido afago que me vela os olhos de ternura... (Ap, p. 221-222).

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