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102<br />
Entendo a tua loucura, meu bom moço, a tua perplexidade diante do poder que te<br />
nasceu nas mãos. Mas como não aprendeste que é mais forte criar uma flor (um parafuso...)<br />
do que destruir um império? O tempo e o amor... Sei o milagre da vida, por isso<br />
a morte me humilha. Tu chamaste a ti a força da humilhação. Mas um tirano só é grande<br />
aos olhos do cobarde. Tenho pena de ti... (ibidem – em itálico no texto transcrito).<br />
Cristina é, por certo, a mais bela personagem de Aparição. Talvez rivalize – e tão<br />
extremamente diferentes são uma da outra! – com a velha tia Dulce. Cristina é uma criança<br />
de apenas sete anos, raiada pela pureza da infância, bafejada pelo mistério da arte da músi-<br />
do seu piano... Cristina parece não pertencer àquele mundo e àquele<br />
ca que fazia evolar<br />
tempo. Com ela, diz Maria Joaquina Nobre Júlio, “entramos num mundo à parte dentro do<br />
universo diegético de Aparição. [...] Cristina habitava um mundo outro, e é como pertença<br />
e signo de um mundo outro que o narrador a trata e no-la apresenta.” . Qual ser inefável<br />
sem tempo e sem lugar, Cristina surge aos olhos e à emoção de Alberto como uma “súbita<br />
aparição”. É assim que ele a recorda à distância dos anos: “E eis que chega a tua hora,<br />
Cristina. Terias tu já dito alguma coisa? Não me lembro. E que dissesses? O que tens a<br />
dizer, as palavras não o sabem. Nem o lugar. Nem a hora. Tu não és de parte alguma, de<br />
tempo algum, Cristina.” (Ap, p. 40). Abalado de emoção, Alberto recorda:<br />
12<br />
E então eu vi, eu vi abrir-se à nossa face o dom da revelação. Que eram, pois,<br />
todas as nossas conversas, a nossa alegria de taças e cigarros, diante daquela evidência?<br />
Tudo o que era verdadeiro e inextinguível, tudo quanto se realizava em grandeza e plenitude,<br />
tudo quanto era pureza e interrogação, perfeito e sem excesso, começava e acabava<br />
ali, entre as mãos indefesas de uma criança. [...] toda a sua face gentil, até agora<br />
impessoal e só de infância, se gravava de arrepio à passagem do mistério. Toca, Cristina.<br />
Eu ouço. Bach, Beethoven, Mozart, Chopin. Estou de lado, ao pé de ti, sigo-te no<br />
rosto a minha própria emoção. [...] E de ver assim presente a uma inocência o mundo do<br />
prodígio e da grandeza, de ver que uma criança era bastante para erguer o mundo nas<br />
mãos e que alguma coisa, no entanto, a transcendia, abusava dela como de uma vítima,<br />
angustiava-me quase até às lágrimas. Toca uma vez ainda, Cristina. Agora, só para mim.<br />
Eu te escuto, aqui, entre os brados deste vento de inverno. Chopin, Noturno nº 20. Ou-<br />
na planície. Donde este lamento, esta súplica? Amargura de sempre, Cristina, tu<br />
ço, ouço. As palmeiras balançam no teu jardim, a noite veste-se de estrelas, adormece<br />
sabe-la.<br />
12 JÚLIO, Maria Joaquina Nobre. Aparição de Vergílio Ferreira: subsídios para uma leitura. Lisboa: Replicação,<br />
1997, p. 91.