Letras Digitais: 30 anos de teses e dissertações
Letras Digitais: 30 anos de teses e dissertações
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<strong>Letras</strong><br />
d i g i t a i s<br />
Teses e Dissertações originais em formato digital<br />
O Cronotopo na obra<br />
“Espaço Terrest re ”: o diálogo<br />
tempo-espaço como princípio<br />
organizado r da narrativa<br />
Ivanda Maria Martins<br />
Silva<br />
1997<br />
Programa <strong>de</strong><br />
Pós-Graduação<br />
em <strong>Letras</strong>
Ficha Técnica<br />
Coor<strong>de</strong>nação do Projeto <strong>Letras</strong> <strong>Digitais</strong><br />
Angela Paiva Dionísio e Anco Márcio Tenório Vieira (orgs.)<br />
Consultoria Técnica<br />
Augusto Noronha e Karla Vidal (Pipa Comunicação)<br />
Projeto Gráfico e Finalização<br />
Karla Vidal e Augusto Noronha (Pipa Comunicação)<br />
Digitalização dos Originais<br />
Maria Cândida Paiva Dionízio<br />
Revisão<br />
Angela Paiva Dionísio, Anco Márcio Tenório Vieira e Michelle Leonor da Silva<br />
Produção<br />
Pipa Comunicação<br />
Apoio Técnico<br />
Michelle Leonor da Silva e Rebeca Fernan<strong>de</strong>s Penha<br />
Apoio Institucional<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Pernambuco<br />
Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em <strong>Letras</strong>
Apresentação<br />
Criar um acervo é registrar uma história. Criar um acervo digital é dinamizar a<br />
história. É com essa perspectiva que a Coor<strong>de</strong>nação do Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação<br />
em <strong>Letras</strong>, representada nas pessoas dos professores Angela Paiva Dionisio e Anco<br />
Márcio Tenório Vieira, criou, em novembro <strong>de</strong> 2006, o projeto <strong>Letras</strong> <strong>Digitais</strong>: <strong>30</strong><br />
<strong>anos</strong> <strong>de</strong> <strong>teses</strong> e dissertações. Esse projeto surgiu <strong>de</strong>ntre as ações comemorativas<br />
dos <strong>30</strong> <strong>anos</strong> do PG <strong>Letras</strong>, programa que teve início com cursos <strong>de</strong> Especialização<br />
em 1975. No segundo semestre <strong>de</strong> 1976, surgiu o Mestrado em Linguística e Teoria<br />
da Literatura, que obteve cre<strong>de</strong>nciamento em 1980. Os cursos <strong>de</strong> Doutorado em<br />
Linguística e Teoria da Literatura iniciaram, respectivamente, em 1990 e 1996. É<br />
relevante frisar que o Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em <strong>Letras</strong> da UFPE, <strong>de</strong> longa<br />
tradição em pesquisa, foi o primeiro a ser instalado no Nor<strong>de</strong>ste e Norte do País. Em<br />
<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2008, contava com 455 dissertações e 110 <strong>teses</strong> <strong>de</strong>fendidas.<br />
Diante <strong>de</strong> tão grandioso acervo e do fato <strong>de</strong> apenas as pesquisas <strong>de</strong>fendidas a partir<br />
<strong>de</strong> 2005 possuirem uma versão digital para consulta, os professores Angela Paiva<br />
Dionisio e Anco Márcio Tenório Vieira, autores do referido projeto, <strong>de</strong>cidiram<br />
oferecer para a comunida<strong>de</strong> acadêmica uma versão digital das <strong>teses</strong> e dissertações<br />
produzidas ao longo <strong>de</strong>stes <strong>30</strong> <strong>anos</strong> <strong>de</strong> história. Criaram, então, o projeto <strong>Letras</strong><br />
<strong>Digitais</strong>: <strong>30</strong> <strong>anos</strong> <strong>de</strong> <strong>teses</strong> e dissertações com os seguintes objetivos:<br />
(i) produzir um CD-ROM com as informações fundamentais das 469<br />
<strong>teses</strong>/dissertações <strong>de</strong>fendidas até <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2006 (autor, orientador, resumo,<br />
palavras-chave, data da <strong>de</strong>fesa, área <strong>de</strong> concentração e nível <strong>de</strong> titulação);
(ii) criar um Acervo Digital <strong>de</strong> Teses e Dissertações do PG <strong>Letras</strong>, digitalizando<br />
todo o acervo originalmente constituído apenas da versão impressa;<br />
(iii) criar o hotsite <strong>Letras</strong> <strong>Digitais</strong>: Teses e Dissertações originais em formato<br />
digital, para publicização das <strong>teses</strong> e dissertações mediante autorização dos<br />
autores;<br />
(iv) transportar para mídia eletrônica off-line as <strong>teses</strong> e dissertações digitalizadas,<br />
para integrar o Acervo Digital <strong>de</strong> Teses e Dissertações do PG <strong>Letras</strong>, disponível<br />
para consulta na Sala <strong>de</strong> Leitura César Leal;<br />
(v) publicar em DVD coletâneas com as <strong>teses</strong> e dissertações digitalizados,<br />
organizadas por área concentração, por nível <strong>de</strong> titulação, por orientação etc.<br />
O <strong>de</strong>senvolvimento do projeto prevê ações <strong>de</strong> diversas or<strong>de</strong>ns, tais como:<br />
(i) <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>rnação das obras para procedimento alimentação automática <strong>de</strong><br />
escaner;<br />
(ii) tratamento técnico <strong>de</strong>scritivo em metadados;<br />
(iii) produção <strong>de</strong> Portable Document File (PDF);<br />
(iv) revisão do material digitalizado<br />
(v) procedimentos <strong>de</strong> reenca<strong>de</strong>rnação das obras após digitalização;<br />
(vi) diagramação e finalização dos e-books;<br />
(vii) backup dos e-books em mídia externa (CD-ROM e DVD);<br />
(viii) <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> rotinas para regularização e/ou cessão <strong>de</strong> registro <strong>de</strong><br />
Direitos Autorais.<br />
Os organizadores
1997<br />
O Cronotop o na obra<br />
“Espaço Terrestr e” : o diálogo<br />
tempo-espaço comoprincípio<br />
organizador da narrativa<br />
Ivanda Maria Martins<br />
Silva<br />
Copyright © Ivanda Maria Martins Silva, 1997<br />
Reservados todos os direitos <strong>de</strong>sta edição. Reprodução proibida, mesmo parcialmente,<br />
sem autorização expressa do autor.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO<br />
CENTRO DE ARTES E COMUNICAC;AO<br />
PROGRAMA DE POS-GRADUAC;AO EM LETRAS<br />
E LINGUfSTICA<br />
o CRONOTOPO NA OBRA ESPAf;O TERRESTRE:<br />
o dhilogo tempo-espa~o como principio<br />
organizador da narrativa<br />
DISSERTAC;AO DE MESTRADO<br />
ORIENT ADORA: Prof! Dra. Maria da Pieda<strong>de</strong> Moreira <strong>de</strong> Sa.<br />
Apresentada ao Programa <strong>de</strong> P6s-<br />
Gradua9ao em <strong>Letras</strong> e Lingiiistica da<br />
UFPE para obten9ao do Grau <strong>de</strong> Mestre<br />
em Teoria da Literatura.
o CRONOTOPO NA OBRAESPAl;O TERRESTRE:<br />
o dhilogo tempo-espa~o como principio<br />
organizador da narrativa
A alguem muitoespecial,<br />
Andre Augusto, m.eu m.arido, pelo<br />
carinho e estimulo em todos os<br />
momentos.
"0 estudo das relayoes espaciais e<br />
temporais nas obras <strong>de</strong> literatura s6 teve inicio ha<br />
muito pouco tempo; alem do mais, foram estudadas<br />
sobretudo as rela90es temporais, que esUlo<br />
obrigatoriamente ligadas as primeiras, isto e, nao<br />
houve a abordagem cronot6pica <strong>de</strong>vida. 0 quanta<br />
esta abordagem proposta no nosso trabalho seja<br />
importante e fecunda, s6 po<strong>de</strong>ra ser <strong>de</strong>terminado no<br />
futuro pela evoluyao dos estudos literarios".
A presente pesquisa busca analisar a cronotopia - intera9ao indissochivel<br />
entre tempo e espa90 - no romance Espar;o Terrestre do autor pemambucano<br />
Gilvan Lemos. A rela9ao entre os indices espaciais e temporais e estudada numa<br />
perspectiva dinfunica que <strong>de</strong>fme 0 cronotopo como especie <strong>de</strong> principio<br />
organizador da narrativa.<br />
Em Espar;o Terrestre, a cronotopia assume capital relevancia quando<br />
varios niveis espa90-temporais (Recife/tempo historico, cronotopo da estrada,<br />
Sulida<strong>de</strong>/tempo ciclico) apresentam-se dialogicamente relacionados. 0 dialogo<br />
entre os cronotopos evi<strong>de</strong>ncia-se na intera9ao dos pI<strong>anos</strong> espa90-temporais que,<br />
ora se opoem, ora se completam. A cronotopia tambem organiza a estratifica9ao<br />
lingUistica (plurilingUismo), na medida em que condiciona as variantes dialetais<br />
utilizadas pelas personagens. Por essa razao, a analise fundamenta-se nas<br />
concep90es <strong>de</strong> Bakhtin (1992 e 1993) sobre cronotopia, dialogismo e<br />
plurilingUismo, estreitamente ligadas na composi9ao do universo romanesco.<br />
o principal objetivo <strong>de</strong>ste trabalho e mostrar como a cronotopia manifestase<br />
enquanto elemento importante na arquitetura do romance Espar;o Terrestre, ao<br />
estruturar a narrativa, tanto no plano formal, quanto no simb6lico.
Agra<strong>de</strong>cemos a todos aqueles que direta ou indiretamente contribuiram<br />
para a realizayao <strong>de</strong>ste trabalho; a Coor<strong>de</strong>nayao do Programa <strong>de</strong> P6s-Graduayao<br />
em <strong>Letras</strong> e Lingiiistica pelo incentivo; ao CNPq pelo fmanciamento <strong>de</strong>sta<br />
pesquisa cientifica; aos professores do Programa <strong>de</strong> P6s-Graduayao pelo estimulo<br />
dado e aos colegas do mestrado, sempre presentes e solidarios.<br />
Em especial, nossos sinceros agra<strong>de</strong>cimentos<br />
a professora Dra. Maria da<br />
Pieda<strong>de</strong> Moreira <strong>de</strong> Sa, pelo excelente trabalho <strong>de</strong> orientayao, alem da <strong>de</strong>dicayao<br />
e disponibilida<strong>de</strong> nos momentos mais dificeis <strong>de</strong>sta dissertayao.
SUMARIO<br />
INTRODU
INTRODU
qual tempo (cranas) e espa90 (tapas) funcionam dialogicamente no romance, na<br />
medida em que "ocorre a fusao dos indicios espaciais e temporais num todo<br />
compreensivo e concreto. [...] 0 tempo con<strong>de</strong>nsa-se, comprime-se, toma-se<br />
artisticamente visivel; 0 proprio espa90 intensifica-se, penetra no movimento do<br />
tempo, do enredo e da historia".<br />
Ao que nos parece, essa n09ao apresentada por Bakhtin nao vem sendo<br />
muito trabalhada pela critica litenrria no Brasil, visto que ha uma acentuada<br />
carencia <strong>de</strong> material bibliografico sobre 0 assunto em lingua portuguesa. Do<br />
levantamento bibliografico realizado, encontramos varios ensaios sobre a<br />
cronotopia em lingua estrangeira (Ingles, Frances e Espanhol). No entanto, nao<br />
tivemos acesso a qualquer artigo em Portugues, 0 que nos surpreen<strong>de</strong>u. Ao longo<br />
do trabalho, as cita90es dos ensaios sobre 0 cronotopo, em lingua estrangeira,<br />
foram por nos traduzidas.<br />
Embora nao se possa interpretar 0 enfoque bakhtiniano como uma teoria<br />
sistematizada a respeito do cronotopo, as consi<strong>de</strong>ra90es apresentadas sobre a<br />
inter-rela9ao entre a concep9ao dialogica e a cronotopica oferecern importantes<br />
subsidios, que, sem duvida, servirao <strong>de</strong> base a uma analise que vise ao estudo <strong>de</strong><br />
tais fenomenos na obra literaria. Pois, como assinala Bakhtin (1993a, p.362),<br />
"sem esta expressao espa90-temporal e impossivel ate mesmo a reflexao mais<br />
10
abstrata. Consequentemente, qualquer intervenyao na esfera dos significados s6<br />
A escolha do tema <strong>de</strong>sta pesquisa justifica-se pela capital importancia da<br />
<strong>de</strong>monstrar, espayo e tempo funcionam como principio organizador da narrativa.<br />
Espar;o Terrestre, publicado em 1993 pela FUNDARPE em co-ediyao<br />
com a Civilizayao Brasileira, ocupa posiyao <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque na produyao ficcional <strong>de</strong><br />
abordada. No romance, a qualida<strong>de</strong> estetica evi<strong>de</strong>ncia-se no dominio da tecnica<br />
narrativa que revela maior amadurecimento na feitura do texto ficcional, se<br />
compararmos Espar;o Terrestre as primeiras obras do autor, como Jutai Menino,<br />
por exemplo. Sobre a qualida<strong>de</strong> artistica do romance Espar;o Terrestre,<br />
afrrma<br />
Almeida (1994): 1<br />
"0 texto <strong>de</strong> Gilvan Lemos insere-se na melhor tradiy8.o<br />
ficcional contemporanea. Coloca em evi<strong>de</strong>ncia a saga nor<strong>de</strong>stina, 0<br />
sabor humano que a cerca, sua conotay8.o historica, seu realismo<br />
magico. A miscigenay8.o salta aos olhos embevecidos do leitor,<br />
que, certamente, fica envolvido no emaranhado estetico do tecido<br />
textual que da vida a Sulida<strong>de</strong>".<br />
1 Afirma Carlisle (1981, p.323) que apesar da qualida<strong>de</strong> esttSticadas obras ficcionais <strong>de</strong> Gilvan Lemos,<br />
a produ
12<br />
No que conceme ao aspecto tematico, 0 romance em foco <strong>de</strong>staca-se pela<br />
representa
criticamente a cronotopia, mostrando a perspectiva <strong>de</strong> outros autores, como Best<br />
(1989, 1990) e Mitterand (1990), por exemplo.<br />
No segundo capitulo, 0 cronotopo da estrada sera analisado como indice da<br />
mudanya <strong>de</strong> urn plano espayo-temporal (cida<strong>de</strong>-tempo historico) a outro (campo-<br />
Ainda nesse capitulo, focalizaremos a cronotopia e 0 dilliogo do romance com os<br />
fatos hist6ricos, por urn lado, e as lendas, por outro. Mostraremos, pois, como 0<br />
ate epis6dios lendarios. A funyao metaf6rica da cronotopia tambem sera<br />
explicada quando estudarmos 0 encontro das personagens com 0 contexto<br />
importancia na composiyao do universo ficcional, urna vez que pI<strong>anos</strong> espayo-<br />
2 Estamos consi<strong>de</strong>rando "acontecimentos hist6ricos" aqueles que retomam 0 passado no texto ficcional<br />
atraves <strong>de</strong> alus5es a fatos historicamente situados no mundo empirico, como 0 enforcamento <strong>de</strong> Frei<br />
Caneca, por exemplo. No entanto, sabemos que no mundo da ficyao tais epis6dios estao no mesmo<br />
plano das lendas folc16ricas, uma vez que sao recriados pe1a Otica subjetiva na criayao ficcional do<br />
escritor.
Sulida<strong>de</strong>/tempo ciclico, por exemplo, interagem e modificamMse quando urn<br />
cronotopo acompanha a evoluc;ao <strong>de</strong> outro.<br />
No quarto e ultimo capitulo, investigaremos 0 papel do cronotopo na<br />
organizac;ao da narrativa, tendo por base a relac;ao dial6gica hist6ria-discurso. 3<br />
Interessa-nos mostrar como a estrutura do discurso esta intimamente ligada<br />
as imagens espac;o-temporais representadas na hist6ria. A nosso ver, a cronotopia<br />
Em suma, a partir <strong>de</strong>sta analise, explicaremos a relevancia da cronotopia,<br />
ao manifestar-se como especie <strong>de</strong> principio organizador da obra Espar;o<br />
presente pesquisa busca oferecer uma contribuic;ao aos estudos literarios que<br />
3 Retomamos aqui a distinyao feita por Todorov (1966) entre historia - sequencia <strong>de</strong> acontecimentos<br />
que envo1ve a participayao <strong>de</strong> personagens num certo tempo-espayo - e discurso - 0 modo atraves<br />
do qua1 a hist6da e concretizada. 'Trataremos da re1ayao hist6da-discurso no quarto capitulo (A<br />
cronotopia e a organizar;:ao da narrativa), para exp1icar a funyao do cronotopo na organizayao da<br />
narrativa a partir da interayao dia16gica entre os acontecimentos no nive1 da hist6ria e. a sequencia dos<br />
mesmos no discurso.
CAPITULO 1<br />
APRESENTA
No campo da critica litenn-ia, 0 autor contribuiu para afmnac;ao da<br />
literatura no processo historico-social, ao criticar 0 Formalismo Russo que<br />
isolava 0 texto litenn-io do contexto <strong>de</strong> produc;ao e analisava a obra enquanto<br />
N a linha historico-social,<br />
Bakhtin avanc;ou em seus ensaios voltados para a<br />
enquanto manifestac;ao artistica atrelada as transformac;oes espaciais e temporais<br />
(cronotopicas) que acompanham a evoluc;ao do proprio homem na socieda<strong>de</strong>.<br />
pesquisa, como ja referimos, a obra <strong>de</strong> Bakhtin nao constiui urn todo homogeneo<br />
e acabado, mas constroi-se atraves <strong>de</strong> varios conceitos inter-relacionados que<br />
40 Formalismo Russo, principalmente em sua primeira fase <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, radicalizava 0 estudo<br />
do texto litenmo como procedimento formal. 0 conteudo era analisado apenas como pretexto para 0<br />
estudo da forma na obra literfuia. A carga simb6lica e a significayao dos textos literfuios eram reduzidas<br />
aos processos <strong>de</strong> exercfcios formais. Nao obstante 0 enfoque bakhtiniano colocar-se em oposiyao ao<br />
Formalismo, <strong>de</strong>ve-se consi<strong>de</strong>rar que alguns estudos dos formalistas a respeito <strong>de</strong> questoes estilisticas<br />
ofereceram subsidios para Bakhtin <strong>de</strong>senvolver a nOyao do dialogismo na par6dia, por exemplo.<br />
Machado (1989) estuda as influencias das id6ias <strong>de</strong> certos formalistas, principalmente Tinianov, na<br />
abordagem bakhtiniana. Segundo a autora, em Tinianov ja se encontram as id6ias precursoras do<br />
sentido dial6gico que Bakhtin retomara e <strong>de</strong>senvolvera. "Se Bakhtin tivesse <strong>de</strong> ren<strong>de</strong>r urn tributo a urn<br />
formalista por te-Io antecedido no tratamento <strong>de</strong> muitos dos temas centrais <strong>de</strong> sua po6tica, urn nome a<br />
ser lembrado em primeiro lugar sena certamente 0 <strong>de</strong> 1. Tinianov, 0 formalista que trabalhou, na linha<br />
que sena a adotada por Bakhtin, conceitos como 0 <strong>de</strong> par6dia e discurso citado". (Machado, 1989,<br />
p.49). A respeito ainda das influencias <strong>de</strong> Tinianov no enfoque <strong>de</strong> Bakhtin, afirma Schnai<strong>de</strong>rman<br />
(1980, p.89) que <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>radas algumas diferenyas nas concepyoes dos dois autares sabre a<br />
par6dia.
17<br />
dialogismo, polifonia, cronotopia, entre outros, sao estudados nao so em<br />
Literatura, como tambem na Lingliistica, na Sociologia e outras areas.<br />
Segundo Mitterand (1990, p.89), Bakhtin nao se preocupou em<br />
sistematizar sua teoria, 0 que se revela no carater heterogeneo <strong>de</strong> seus escritos e<br />
na utiliza
<strong>de</strong> classifica~ao das obras <strong>de</strong> Bakhtin, tomando como criterio a epoca em que<br />
foram produzidas. 5<br />
Todorov, no prefacio a obra Estetica da Cria9iio Verbal (1992, p. 14-15),<br />
A primeira fase e marcada por uma concep~aofenomenologica,<br />
presente<br />
no primeiro livro <strong>de</strong> Bakhtin - A poetica <strong>de</strong> Dostoievski - em que se discute,<br />
entre outros aspectos, a re1a~ao<strong>de</strong> alterida<strong>de</strong> entre 0 autor e 0 her6i. Conforme<br />
autor, capaz <strong>de</strong> abarcar 0 todo da personagem. Nessa perspectiva e que Bakhtin<br />
introduz a no~ao <strong>de</strong> tempo e espa~o para <strong>de</strong>terminar a posi~ao do escritor em<br />
5 Starn (1992, p.ll) diz que e muito dificil classificar Mikhail Bakhtin em fazaO <strong>de</strong> seus escritos<br />
englobarem areas diversas do conhecimento. Afirma Starn que talvez seja melhor consi<strong>de</strong>rar Bakhtin<br />
"simplesmente urn dos rnaiores pensadores do sec. XX". Apesar <strong>de</strong>ssa abrangencia do enfoque<br />
bakhtiniano, alguns autores divi<strong>de</strong>m a abordagem <strong>de</strong> Bakhtin em fases. Morson e Emerson (1984, p. 5),<br />
por exemplo, afirmam que as i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> Bakhtin po<strong>de</strong>m ser enquadradas em quatro periodos. Segundo<br />
os autores, 0 primeiro perfodo, concluido aproximadarnente em 1924, engloba varios escritos sobre<br />
etica e estetica. No segundo perfodo, as i<strong>de</strong>ias bakhtinianas dialogarn com a crftica ao Formalismo<br />
Russo na tentativa <strong>de</strong> criar urn mo<strong>de</strong>lo alternativo <strong>de</strong> linguagem. Na primeira fase, a linguagem ainda<br />
nao era urna categoria central nas discussoes bakhtinianas, enquanto no segundo perfodo, Bakhtin<br />
<strong>de</strong>senvolve a nOyao<strong>de</strong> dialogismo. Nesse periodo, a obm que se <strong>de</strong>staca e A Poetica <strong>de</strong> Dostoievski,<br />
em que 0 autor <strong>de</strong>senvolve a nOyao da polifonia. No terceiro periodo, que vai aproximadarnente <strong>de</strong><br />
19<strong>30</strong> a 1940, 0 romance toma-se urn genero central no pensamento bakhtiniano. Destaca-se 0 ensaio<br />
Discurso no Romance, no qual Bakhtin <strong>de</strong>senvolve as nOyoes<strong>de</strong> cronotopo e camavalizayao. No ultimo<br />
periodo, 0 autor retoma aos assuntos filos6ficos da primeira fase e investe em alguns pontos da Hist6ria<br />
literaria. Nessa fase, <strong>de</strong>staca-se 0 ensaio Para uma Metodologia das Ciencias Humanas.<br />
6 As consi<strong>de</strong>rayoes que seguern tern por base os comentarios tecidos por Todorov, no livro acima<br />
citado.
ela9ao ao her6i, <strong>de</strong>stacando a exotopia do primeiro, isto e, 0 olhar exterior que<br />
<strong>de</strong>fme a imagem da personagem. 7<br />
o segundo momento, socioI6gico-marxista,<br />
compreen<strong>de</strong> os tres livros<br />
assinados pelos amigos e colaboradores <strong>de</strong> Bakhtin: Marxismo e jilosojia da<br />
Dentre essas obras, <strong>de</strong>staca-se Marx ism0 e jilosojia da linguagem<br />
filos6ficas (0 objetivismo abstrato e 0 subjetivismo i<strong>de</strong>alista), aMm <strong>de</strong> revelar<br />
uma concep9ao ampla sobre 0 discurso. 0 signo lingiiistico e estudado enquanto<br />
fenomeno hist6rico-social e dotado <strong>de</strong> carga i<strong>de</strong>o16gica, aMm <strong>de</strong> manter-se<br />
dialogismo e analisado como principio inerente a linguagem, pOlS qualquer<br />
produ9ao lingiiistica esta marcada pelas diversas vozes que se mesc1am it voz do<br />
enunciador. Ainda em Marx ism0 e jilosojia da linguagem, Bakhtin aprofunda 0<br />
carater dia16gico da linguagem, ao apresentar as estrategias <strong>de</strong> organiza9ao do<br />
7 Sobre a exotopia, explica Bakhtin (1992, p.4S): "0 exce<strong>de</strong>nte da minha visao contem em germe a<br />
forma acabada do outro, cujo <strong>de</strong>sabrochar requer que eu the complete 0 horizonte sem 1he tirar a<br />
originalida<strong>de</strong>. Devo i<strong>de</strong>ntificar-me com 0 outro ever 0 mundo atraves <strong>de</strong> seu sistema <strong>de</strong> valores, tal<br />
como ele vS; <strong>de</strong>vo colocar-me em seu lugar, e <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong> volta ao meu lugar, completar seu horizonte<br />
com tudo 0 que se <strong>de</strong>scobre do 1ugar que ocupo, fora <strong>de</strong>le [...]".
Na obra 0 metodo formal em estudos literarios, publicada em 1928 e<br />
assinada por P. Medve<strong>de</strong>v, e evi<strong>de</strong>nte a critic a ao Formalismo Russo, que isolava<br />
o texto litenirio do processo historico-social. N a ansia <strong>de</strong> buscar uma<br />
sistematiza
21<br />
Do nosso ponto <strong>de</strong> vista, essa fase aprofunda aspectos do pensamento<br />
bakhtiniano, ja esbo
No ensaio publicado inicialmente com 0 titulo 0 Romance <strong>de</strong> Educac;ao e<br />
seu Significado na Hist6ria do Realismo (1936), Bakhtin tambem discute a<br />
cronotopia e <strong>de</strong>senvolve urn estudo tipologico do romance. 9<br />
Segundo 0 autor, a relayao dialogica tempo-espayo, ou cronotopo, <strong>de</strong>ve ser<br />
pelas transformayoes temporais e espaciais da realida<strong>de</strong> social. Discutiremos a<br />
concepyao <strong>de</strong> cronotopo e sua importancia para os estudos litenirios em 1.1.1,<br />
o plurilingliismo, isto e, a estratifica9ao <strong>de</strong> varias linguagens que<br />
participam da construyao do discurso romanesco, e <strong>de</strong>senvolvido no ensaio 0<br />
que nao consi<strong>de</strong>rava<br />
a orienta9ao dialogic a da linguagem na analise do genero<br />
romanesco,<br />
e propoe 0 enfoque sociologico, voltado para a linguagem enquanto<br />
"A pluridiscursivida<strong>de</strong> e a dissonancia penetram no<br />
romance e organizam-se nele em urn sistema litenirio harmonioso.<br />
Nisto resi<strong>de</strong> a particularida<strong>de</strong> especifica do genero romanesco.<br />
A unica estilistica a<strong>de</strong>quada para 0 genera romanesco e a<br />
estilistica sociologica. A dialogicida<strong>de</strong> intema do discurso<br />
romanesco exige a revelac;ao do contexto social concreto, 0 qual<br />
<strong>de</strong>termina toda a sua estrutura estilistica, sua 'forma' e seu<br />
9 Esse trabalho, publicado em Portugues sob 0 titulo "0 romance <strong>de</strong> educayao na hist6ria do<br />
Realismo", esta inc1uido na obra Estetica da criac;tio verbal, 1992. Nesse ensaio, Bakhtin analisa a<br />
evoluyao e as t:ransformayoes dos indices espaciais e temporais em v<strong>anos</strong> tipos <strong>de</strong> romances: romance<br />
<strong>de</strong> viagem, romance <strong>de</strong> provas, romance biognifico e romance <strong>de</strong> educayao (ou <strong>de</strong> fonnayao).
'conteudo', sendo que os <strong>de</strong>termina nao a partir <strong>de</strong> fora, mas <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>ntro; pois 0 dhilogo social ressoa no seu proprio discurso, em<br />
todos os seus elementos, sejam eles <strong>de</strong> 'conteudo' ou <strong>de</strong> 'forma' ".10<br />
homo logo a organiza«ao da socieda<strong>de</strong>, mas urn dialogo dinfunico que se<br />
Conforme Todorov, 0 pensamento bakhtiniano ainda po<strong>de</strong> apresentar urn<br />
quinto periodo, marc ado pelos ultimos <strong>anos</strong> da produ«ao <strong>de</strong> Bakhtin, em que este<br />
10 Opina com justeza Kinser (1984, p. <strong>30</strong>5) que a linha marxista cia abordagem bakhtiniana nao e<br />
ortodoxa, pois Bakhtin salienta que 0 discurso artistico nao po<strong>de</strong> ser analisado como reflexo simples e<br />
direto da estrutura social.<br />
11 Dentre os que estudaram 0 romance nurna linha socioI6gico-marxista, <strong>de</strong>stacam-se Lukacs (1970) e<br />
Goldman (1976). Lukacs diz que a obra literana e urn reflexo da socieda<strong>de</strong>, 0 romance e a hist6ria <strong>de</strong><br />
urn her6i problematico que busca encontrar valores autenticos nas relayoes sociais. A nosso ver, a<br />
teoria do reflexo <strong>de</strong> Lukacs nao consegue transcen<strong>de</strong>r<br />
0 dialogo dinfunico que se instaura entre 0 texto<br />
literano e 0 contexto hist6rico-social. Na verda<strong>de</strong>, a nOyao <strong>de</strong> reflexo para Lukacs nao e urn ponto<br />
pacifico nas discussoes te6ricas. Alguns criticos <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m que 0 reflexo na abordagem <strong>de</strong> Lukacs nao e<br />
urna representayao direta da estrutura social. Contudo, parece-nos que ao privilegiar a analise <strong>de</strong> textos<br />
do Realismo, a abordagem do autor prioriza a obra literana enquanto representa
Como vimos, 0 pensamento <strong>de</strong> Bakhtin vai se <strong>de</strong>senvolvendo aos poucos,<br />
na evoluyao e transformayao <strong>de</strong> certos conceitos que muitas vezes se interligam e<br />
dialogismo e 0 plurilingiiismo, a fnn <strong>de</strong> explicar as conex5es dial6gicas entre<br />
1. 1. 1- A CONCEP
contudo, nao apresenta urna explica
sem, no entanto, restringir-se ao processo <strong>de</strong> incorporac;ao e transformac;ao <strong>de</strong> um<br />
Ao discutir 0 principio dial6gico da linguagem, diz Todorov (1981, p. 95)<br />
que 0 conceito <strong>de</strong> dialogismo assume 0 estatuto <strong>de</strong> urn termo geral na abordagem<br />
<strong>de</strong> Bakhtin, sendo empregado em varios momentos com sentidos diversos.<br />
Essa concepc;ao aprOX1llla-se da i<strong>de</strong>ia do diaIogo entre participantes<br />
<strong>de</strong><br />
interlocutores, mas tambem do processo <strong>de</strong> interac;ao verbal que, segundo<br />
Bakhtin (1995, p. 123), constitui "a realida<strong>de</strong> fundamental da lingua". Nessa<br />
o pr6prio Bakhtin (1995, p.123) consi<strong>de</strong>ra duas possibilida<strong>de</strong>s para se<br />
formas cruciais na interac;ao verbal, 0 dialogo <strong>de</strong>ve ser analisado no sentido mais<br />
da exotopia, a minha palavra esta inexoravelmente contaminada do olhar <strong>de</strong> fora do outro que the da<br />
sentido e acabamento".
27<br />
A natureza dial6gica da linguagem apresenta-se, aSS1lll,como uma das<br />
n090es mais complexas, em razao da diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentidos que, como ja<br />
salientamos, 0 autor utiliza 0 termo dialogismo.<br />
2- Dialogismo intemo (ou dialogicida<strong>de</strong> intema).<br />
Nesse segundo nivel do dialogismo, <strong>de</strong>stacam-se as rela90es que se<br />
estabelecem entre os elementos constitutivos do discurso. Ao estudar 0<br />
cronotopo, por exemplo, Bakhtin poe em relevo 0 dialogo que se instaura entre<br />
duas categorias fundamentais na organiza9ao do discurso narrativo: tempo e<br />
espa90. Na perspectiva da dialogicida<strong>de</strong> interna, 0 autor afrrma a rela9ao<br />
indissociavel que ha entre os indices espaciais e temporais.<br />
Alem da cronotopia, 0 plurilingiiismo <strong>de</strong>ve ser analisado como fenomeno<br />
que marca 0 dialogismo intemo entre as varias linguagens incorporadas ao<br />
discurso romanesco.<br />
Como afirma Bakhtin (1993a, p. 92), a dialogicida<strong>de</strong> intema esta presente<br />
em "todas as esferas do discurso vivo. [...] na prosa literaria, e em particular no<br />
romance, ela penetra interiormente na pr6pria concep9ao <strong>de</strong> objeto do discurso e<br />
na sua expressao, transformando sua semantica e sua estrutura sintatica".<br />
3- Dialogismo na relayao entre textos e enunciados anteriores ou posteriores no<br />
momento da intera9ao comunicativa.
A intera~ao entre textos ou enunciados aproxnna-se do conceito <strong>de</strong><br />
intertextualida<strong>de</strong> sistematizado por Kristeva (1974). Para Bakhtin, nossa<br />
linguagem encontra-se na fronteira entre discursos j a realizados anteriormente e<br />
outros que ainda possam surgir. 0<br />
dialogismo, entendido nessa perspectiva,<br />
realiza-se pela presen~a <strong>de</strong> duas ou mais vozes nurn mesmo espa~o discursivo ou<br />
Ao afmnar a natureza dial6gica entre varios discursos que se encontram e<br />
sempre relacionada ao contato com signos anteriormenteja conhecidos. Por isso,<br />
o processo <strong>de</strong> compreensao funciona como "resposta a urn signo por meio <strong>de</strong><br />
signos". Nesse nivel do dialogismo, a linguagem dos interlocutores esta sempre<br />
Parece-nos que, no processo interativo, 0 fenomeno do dialogismo esta<br />
intrinsecamente ligado a polifonia, <strong>de</strong>fmida por Bakhtin (1981, p. 16) como 0<br />
ressoar <strong>de</strong> diversas vozes, varios pontos <strong>de</strong> vista que se intercruzam nurn mesmo<br />
13 No ensaio "Polifonia textual e discursiva", inc1uido na coletanea Dialogismo, polifonia e<br />
intertextualida<strong>de</strong>, organizada por Diana Barros e Luiz Fiorin, este ultimo critica 0 enfoque<br />
kristevaniano que consi<strong>de</strong>ra 0 dialogismo apenas no mve1 da intertextualida<strong>de</strong>. Segundo 0 autor (1994:<br />
29), "it rica e multifacetada concep9ao do dia1ogismo em Bakhtin se opas 0 conceito redutor, pobre e,<br />
ao mesmo tempo, vago e impreciso <strong>de</strong> intertextualida<strong>de</strong>. Foi Kristeva quem, no ambiente do<br />
estruturalismo frances dos <strong>anos</strong> 60, pas em yoga esse conceito" ,
plano discursivo. Sob esse aspecto, os conceitos <strong>de</strong>senvolvidos por Bakhtin<br />
comeyam a imbricar-se no ponto comurn da natureza dial6gica da linguagem.<br />
4- Dialogismo no nivel das relayoes entre texto-contexto, linguagem-hist6ria,<br />
linguagem-i<strong>de</strong>ologia,<br />
linguagem-socieda<strong>de</strong>.<br />
Tem-se aqui urna perspectiva mais ampla do dialogismo,<br />
a qual envolve<br />
Conforme Bakhtin (1995, p. 32), entre a linguagem e 0 contexto em que<br />
ela se insere, estabelece-se<br />
urn processo dinfunico e interativo, pois "urn signa<br />
nao existe apenas como parte <strong>de</strong> urna realida<strong>de</strong>~ ele tambem reflete e refrata uma<br />
outra. Ele po<strong>de</strong> distorcer essa realida<strong>de</strong>, ser-lhe fiel, ou apreen<strong>de</strong>-Ia <strong>de</strong> urn ponto<br />
A linguagem e produto do contexto hist6rico-social do qual participa, aMm<br />
<strong>de</strong> tambem estar influenciada pelas circunstancias em que ocorre a interayao<br />
uma 6tica translingiiistica,<br />
segundo a qual a enunciayao (0 contexto extraverbal)<br />
nao e apenas urna motivac;ao para a realizac;ao dos enunciados, mas parte<br />
14 Segundo Kothe (1981), em 0 metodo formal em estudos literarios - obra assinada por Medve<strong>de</strong>v<br />
- Bakhtin <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a rela
Para uma melhor compreensao do que expusemos a respeito da natureza<br />
dia16gica da linguagem, po<strong>de</strong>mos representar os v<strong>anos</strong> niveis <strong>de</strong> dialogismo da<br />
sentido mais restrito -<br />
dialogo entre enunciador e enunciatario no processo <strong>de</strong><br />
intera9ao verbal -<br />
ate a concep9ao mais abrangente que ultrapassa a dimensao<br />
como parte constitutiva do discurso. Esses niveis apresentam-se interligados na<br />
Nas manifestayoes artisticas, no caso a literatura, nao po<strong>de</strong> haver urn espelhamento direto do contexto<br />
social, historico e i<strong>de</strong>ologico. A obra <strong>de</strong> arte, atraves do processo <strong>de</strong> criayao da ficcionalida<strong>de</strong>, mantem<br />
urn diaIogo dinfunico com a socieda<strong>de</strong>. Assinala Kothe (1981, p.190) que "para Medve<strong>de</strong>v [Bakhtin],<br />
cada fenomeno litenrrio e <strong>de</strong>terminado simultaneamente <strong>de</strong> fora e <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro: <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro, pela propria<br />
literatura; <strong>de</strong> fora, pe10s outros setores da vida social. [...] Urn fator externo, quando influi na literatura,<br />
torna-se urn fator interno para a ev01uyao litenlria, mas, enquanto fator 1iterano interno, torna-se externo<br />
para os oUtros setores 'i<strong>de</strong>ologicos"'.
linguagem e 0 contexto (social, cultural, i<strong>de</strong>ol6gico) constitutivos da significa9ao<br />
o conceito <strong>de</strong> dialogismo, alem das n090es <strong>de</strong> polifonia e carnavaliza9ao<br />
na literatura, e, talvez, urn dos mais revisitados por aqueles que se <strong>de</strong>dicam ao<br />
Ao referir-se a concep9ao bakhtiniana <strong>de</strong> dialogismo enquanto palavra<br />
que retoma outra palavra, ou texto produzido a partir <strong>de</strong> outros textos, Kristeva<br />
(1974) <strong>de</strong>senvolve a n09ao <strong>de</strong> intertextualida<strong>de</strong>. Segundo a autora (1974, p. 64),<br />
"[...] todo texto se constr6i como mosaico <strong>de</strong> cita90es, todo texto e absor9ao e<br />
transforma9ao <strong>de</strong> urn outro texto. Em lugar da n09ao <strong>de</strong> intersubjetivida<strong>de</strong>,<br />
instala-se a <strong>de</strong> intertextualida<strong>de</strong><br />
e a linguagem poetica le-se pelo menos como<br />
15 Leila Perrone-Moises (1978) distingue dois niveis <strong>de</strong> intertextualida<strong>de</strong>: a intertextualida<strong>de</strong> poetica e<br />
a intertextualida<strong>de</strong> cr[tica. Na primeira, observa-se 0 diaiogo entre textos liter<strong>anos</strong>, ao passo que na<br />
segunda, 0 trabalho intertextual consiste em escrever urn texto sobre outro texto. Para a autora (1978,<br />
p.64), ocorre "no discurso critico 0 entrecruzamenmto <strong>de</strong> dois textos, 0 texto analisado e 0 texto<br />
analisante". A nosso ver, essa perspectiva <strong>de</strong> Perrone-Moises trata a intertextualida<strong>de</strong> como fen6meno<br />
muito amplo, a partir da re1ayao maior entre generos discursivos.
Compreen<strong>de</strong>-se, assnn, a linguagem nao como conjunto <strong>de</strong> artificios<br />
abstratos, e sim como fenomeno influenciado pelas mudan9as historico-sociais<br />
que interferem no contexto comunicativo.<br />
No enfoque <strong>de</strong> Bakhtin, a oposi9ao entre a concep9ao dialogica da<br />
linguagem por urn lado, e 0 monologismo (ou homofonia), por outro, suscitou a<br />
Schnai<strong>de</strong>rman (1983, p. 101), por exemplo, afrrma que algumas ressalvas<br />
<strong>de</strong>vem ser feitas ao ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> Bakhtin sobre a dicotomia<br />
monologico/dialogico. Para Schnai<strong>de</strong>rman, 0 proprio termo monologico toma-se<br />
Kothe (1977, p. 28) vai mais aMm em sua critica, ao afrrmar que Bakhtin<br />
ressalta 0 dialogismo, mas oculta 0 carater monologico da propria abordagem que<br />
"Bakhtin acaba constituindo uma Poetica que, em seu<br />
fechamento, em seu carater <strong>de</strong> negavao <strong>de</strong>terminada, acaba sendo<br />
mono16gica, mimetizando aquilo a que se op5e. [...]<br />
Aparentemente libertaria e contra as normas, sua rigida norma e<br />
exatamente esta: a transgressao da norma, a enfase it. literatura<br />
que registre positivamente eventos que transgridam a norma e 0<br />
dogma oficiais".
Jei a posi
Alem disso, Bakhtin (1992, p. 345-346) discute a rela
1. 1. 2 - 0 PLURILINGUISMO E 0 CRONOTOPO: a estratifica~ao<br />
lingiiistica e 0 dialogo tempo-espa~o na organiza~ao da narrativa<br />
conceitos formulados e <strong>de</strong>senvolvidos por Bakhtin ao longo <strong>de</strong> seus escritos, pois<br />
alem <strong>de</strong> interligadas a concep
estrategias como os discursos do narrador e das personagens, e os generos<br />
Consi<strong>de</strong>rando-se<br />
caniter pluridiscursivo<br />
0 papel da linguagem no mundo empirico, esta revela seu<br />
marcado pelos varios niveis dialetais e pela multiplicida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> generos do discurso. 0 romance, enquanto manifesta9ao <strong>de</strong> linguagem que<br />
plurilingiiismo,<br />
isto e, assimila a estratifica9ao <strong>de</strong> divers as linguagens e generos<br />
na organiza9ao do universo ficcional.<br />
"0 plurilingiiismo introduzido no romance (quaisquer que<br />
sejam as formas <strong>de</strong> sua introdw;ao) e 0 discurso <strong>de</strong> outrem na<br />
Iinguagem <strong>de</strong> outrem, que serve para refratar a expressao das<br />
inten90es do autor. A palavra <strong>de</strong>sse discurso e uma palavra bivocal<br />
especia1."<br />
o carater bivocal da palavra no romance mostra-se nas varias entona90es<br />
"discurso <strong>de</strong> outrem" na organiza9ao discursiva, ou seja, a percep9ao <strong>de</strong> pelo<br />
menos duas vozes que se cruzam no mesmo espa90 discursivo.
Ao estudar a organizayao da heterogeneida<strong>de</strong> discursiva no romance,<br />
Bakhtin (1993a, p. 96) ressalta a influencia dos generos na composiyao do<br />
romance e afrrma que 0 plurilingliismo e <strong>de</strong>terminado pela estratificayao da<br />
lingua. Assim, as transformayoes historicas que a lingua sofre no processo <strong>de</strong><br />
evoluyao sao inseparaveis das mudanyas observadas nos generos discursivos.<br />
Ao observar a forte influencia dos generos na formayao <strong>de</strong> diversas<br />
linguagens, Bakhtin (1992, p.281) distingue os generos primarios e os<br />
secundarios. Os primeiros, tambem chamados simples, sao formados em<br />
contextos nos quais 0 uso da linguagem se realiza <strong>de</strong> forma mais espontanea,<br />
como por exemplo replicas <strong>de</strong> urn dialogo, recados, cartas, entre outros<br />
enunciados produzidos nurna situayao informal <strong>de</strong> comunicayao; os segundos,<br />
generos secundarios, sao produzidos em contextos mais complexos que exigem<br />
37<br />
maior elaborayao. Bakhtin cita como exemplo <strong>de</strong>stes 0 romance, 0 teatro e 0<br />
discurso cientifico.<br />
assimilam e transformam os generos primarios, evi<strong>de</strong>nciando, assim, 0 carater<br />
pluridiscursivo da linguagem artisticamente representada no mundo da ficyao.<br />
No romance, a heterogeneida<strong>de</strong> discursiva esta presente na introduyao e<br />
organizayao <strong>de</strong>sses generos primarios que participam da composiyao do discurso
narrativo. Ao serem incorporados ao texto litenirio, os generos primarios per<strong>de</strong>m<br />
sua rela9ao imediata e direta com a realida<strong>de</strong> empirica, pois tomam-se parte<br />
constitutiva da obra literaria e so po<strong>de</strong>m ser analisados <strong>de</strong>ntro do universo<br />
Conforme Bakhtin, 0 genero nao e urna categoria estatica e fechada, mas<br />
se modifica <strong>de</strong> acordo com as transforma90es historicas e sociais que ocorrem no<br />
genero comporta urna dimensao historic a: ele nao e simplesmente urna<br />
intersec9ao <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s<br />
sociais e formais, mas urn fragmento da memoria<br />
Dada a forma9ao dos generos e a dimensao espa90-temporal que interfere<br />
nesse processo, Bakhtin analisa as manifesta90es cronotopicas e suas varia90es<br />
em diferentes tipos <strong>de</strong> romances como: 0 romance grego, 0 romance biognifico, 0<br />
17 Authier-Revuz (1982) analisa as formas <strong>de</strong> heterogeneida<strong>de</strong> discursiva em dois mvelS:<br />
heterogeneida<strong>de</strong> mostrada e heterogeneida<strong>de</strong> constitutiva. Na primeira, as marcas linguisticas da<br />
presen9a do outro estao explicitamente representadas na superficie do discurso. Nesse caso, 0 discurso<br />
direto, 0 discurso indireto, as cita90es, entre outros, sao formas <strong>de</strong> introdu9ao do discurso do outro. Na<br />
heterogeneida<strong>de</strong> constitutiva, a autora estuda 0 dialogismo do circulo <strong>de</strong> Bakhtin e os trabalhos da<br />
psican:ilise lacaniana que inscrevem 0 outro numa perspectiva mais abrangente, pois 0 discurso que<br />
produzimos diariamente esta repleto <strong>de</strong> outras vozes, outras linguagens e consciencias que se tomam<br />
parte integrante <strong>de</strong> nossa linguagem.
enquanto genero historicamente influenciado pelas transformac;oes sociais<br />
N a 6tica <strong>de</strong> Bakhtin, 0 romance e 0 genero que melhor consegue<br />
representar<br />
a dinfunica e as contradic;oes do homem no tempo e no espac;o. Por<br />
medida em que sao analisadas a evoluc;ao do genero e a influencia das<br />
transformac;oes hist6rico-sociais na constrw;ao da imagem cronot6pica.<br />
Consi<strong>de</strong>rando a importancia que Bakhtin confere ao estudo do romance,<br />
".8 ao insistir na primazia da palavra e na diversificayao das<br />
linguas no interior da linguagem que Bakhtin vem fonnular uma<br />
teoria original do romance e <strong>de</strong> sua significayao extraliteniria. Para<br />
ele, 0 romance e a pintura do mundo, da palavra, do discurso. [...]<br />
o romance aparece assim como a manifestayao mais lucida <strong>de</strong> uma<br />
henneneutica da vida social <strong>de</strong> todos os dias".<br />
Como ja referimos, pelo fato <strong>de</strong> 0 genero romanesco refletir e transformar,<br />
por meio do processo <strong>de</strong> ficcionalizac;ao, a dimensao hist6rica e social do<br />
Apesar <strong>de</strong> estudar a cronotopia sempre relacionada ao problema do genero<br />
romanesco,<br />
0 enfoque <strong>de</strong> Bakhtin ultrapassa os dominios da literatura, po<strong>de</strong>ndo
Por ter focalizado a relayao tempo-espayo numa perspectiva dial6gica e<br />
hist6rica, Bakhtin avanya em relayao a critica liteniria formalista, contemponmea<br />
dicotomica, isolando-as na discussao te6rica. A nOyao <strong>de</strong> cronotopo, como<br />
explicaremos adiante, <strong>de</strong>sfaz essa dicotomia.<br />
1. 1. 3 - 0 CRONOTOPO NA ABORDAGEM BAKHTINIANA E NA<br />
PERSPECTIVA DE OUTROS AUTORES<br />
Na abordagem <strong>de</strong> Bakhtin, a nOyao <strong>de</strong> cronotopia e analisada mms<br />
<strong>de</strong>tidamente no ensalO Formas <strong>de</strong> Tempo e <strong>de</strong> Cronotopo no Romance,
o cronotopo representa, para Bakhtin (1993a, p. 211), a "expressao <strong>de</strong><br />
indissolubilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> espa90 e <strong>de</strong> tempo", ou seja, a rela9ao <strong>de</strong> inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ncia<br />
Segundo 0 autor (1993a, p. 211): "Os indices do tempo transparecem no<br />
espa90, e 0 espa90 reveste-se <strong>de</strong> sentido e e medido com 0 tempo. Esse<br />
A luz <strong>de</strong> Bakhtin, analisaremos 0 cronotopo enquanto categoria comp6sita,<br />
cujos elementos constitutivos - tempo e espa90- formam urn todo inseparavel,<br />
ainda que seja possivel conce<strong>de</strong>r alguma proeminencia a urn ou a outro. Se<br />
narrativa, ganha naturalmente importancia a nOyao <strong>de</strong> cronotopo na arquitetura<br />
No universo romanesco, 0 cronotopo funciona como principio criativo que<br />
dial6gica, atraves da qual tempo e espayo ficcionais <strong>de</strong>vem manter relayoes<br />
18 A nOyao do cronotopo foi introduzida na teoria da re1ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Einstein. Bakhtin retoma essa<br />
nOyao e tenta aplica-la ao estudo <strong>de</strong> textos litenirios, contribuindo para a divulgayao do conceito do<br />
cronotopo nas areas <strong>de</strong> Critica Liteniria e Hist6ria da Literatura.
que seja a obra, nao po<strong>de</strong>mos interpretar 0 mundo representado apenas como<br />
reflexo direto do contexto empirico, pois a criavao artistica implica justamente 0<br />
processo <strong>de</strong> transformavao do mundo real no universo ficcional da obra,<br />
construida a partir do ponto <strong>de</strong> vista do autor. A lei do posicionamento e que<br />
<strong>de</strong>terminara 0 angulo <strong>de</strong> visao escolhido para representar 0 dialogo entre a obra e<br />
Urn dos fatores <strong>de</strong>terminantes da representavao da imagem cronot6pica no<br />
discurso romanesco e a lei do posicionamento, segundo a qual po<strong>de</strong>m ocorrer<br />
diferentes focalizavoes sobre <strong>de</strong>terminado epis6dio, uma vez que narrador e<br />
personagem ocupam posivoes diferentes e <strong>de</strong>sempenham papeis distintos no<br />
este e <strong>de</strong>terminado pelo lugar <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vemos". (Holquist, 1990, P.164, apud<br />
tempo-espavo on<strong>de</strong> 0 evento se realizou". Os indices cronot6picos, pois, variam<br />
<strong>de</strong> acordo com as diferentes perspectivas sobre urn mesmo acontecimento. 19<br />
19 Observa-se a nOyao da cronotopia ligada ao conceito <strong>de</strong> exotopia. No ensaio "A construyao das vozes<br />
no romance", inc1uido na coletanea Bakhtin, dialogismo e construr;:Ciodo sentido, organizada por Beth<br />
Brait, Cristovao tezza (1997, p.223) diz: "[ ...] a exotopia nao e apenas urn conceito espacial, a instancia<br />
do olhar - e tambem, alias inseparavelmente, urn conceito temporal [...]. E 0 exce<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> visao, no
como base a natureza dialogica da linguagem que permeia todo enfoque<br />
bakhtiniano. Assim, a nOyao da cronotopia, relaciona-se, por uma parte, ao<br />
empirica -<br />
e outro representado no texto litenirio; por outra, pren<strong>de</strong>-se ao<br />
propria forma espayo-temporal. Entendida nessa perspectiva dialogica, a relayao<br />
tempo-espayo adquire importancia capital, na medida em que participa da<br />
objetivo <strong>de</strong> oferecer uma sistematizayao das i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> Bakhtin, seja para propor<br />
abordagem bakhtiniana. No entfuJto,ao rever a nOyao<strong>de</strong> cronotopia, peca pela<br />
tempo e no espa90, que <strong>de</strong>i sentido estetico it consciencia do outro, <strong>de</strong>i-lhe forma e acabamento, urna<br />
forma e urn acabamento que jamais po<strong>de</strong>mos ter por conta propria, na estrita solidao <strong>de</strong> nossa voz".
falta <strong>de</strong> urna apreciayao critica, restringindo-se<br />
a urna especie <strong>de</strong> resumo dos<br />
principais cronotopos estudados pelo autor. Embora nao seja urn estudo critico<br />
- a autora endossa quase que integralmente os pressupostos bakhtini<strong>anos</strong> - a<br />
leitura feita por Machado e interessante na medida em que oferece urna sintese<br />
cronotopia, sem, contudo, ampliar muito a discussao te6rica. 0 autor consi<strong>de</strong>ra 0<br />
predominio do tempo em relayao ao espayo na abordagem bakhtiniana; dai<br />
afmnar que "a teoria do cronotopo e urna teoria do tempo romanesco mais que<br />
objetos estao no tempo e ao po<strong>de</strong>r do tempo, ja que a temporalida<strong>de</strong> e 0<br />
elemento que dinamiza 0 espayO e esta concretamente localizada no espayo.<br />
pela autora. A luz da teoria <strong>de</strong> Bakhtin, Best (1990) estabelece uma relayao entre
- <strong>de</strong>ve ser analisada no texto literario como fator que gera a <strong>de</strong>gradar;ao da<br />
narrativa. De acordo com Best (1990, p. 488), a entropia po<strong>de</strong> explicar 0<br />
funcionamento <strong>de</strong> urna narrativa, quando a a9ao come9a nurna fase <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sequilibrio, como por exemplo situa90es antiteticas -<br />
personagens rivais,<br />
sentido, a intriga forma-se pela evolu9ao <strong>de</strong> certa situa9ao inicial que passa por<br />
urna serie <strong>de</strong> estados intermediarios e atinge urn estado <strong>de</strong> entropia total.<br />
Se a entropia gera a <strong>de</strong>grada9ao da narrativa, a cronotopia funciona como<br />
principio organizador responsavel pela gerar;ao da narrativa, isto e, pelo<br />
Na perspectiva <strong>de</strong> Best (1990, p. 485) tanto a cronotopia, quanto a<br />
entropia sugerem que a narrativida<strong>de</strong> nao esta relacionada apenas a<br />
temporalida<strong>de</strong> -<br />
como afirmou Ricoeur (1994), ao discutir a refigura9ao do<br />
tempo na narrativa - senao tambem a espacialida<strong>de</strong>. 22<br />
21 A entropia e a cronotopia silo conceitos originalmente introduzidos pelas ciencias exatas (Fisica,<br />
Matematica), mas que atualmente silo empregados no estudo <strong>de</strong> textos literirios. Em seu senti do<br />
original, a entropia consiste na perda <strong>de</strong> energia por meio da <strong>de</strong>gradayilo da materia, e a cronotopia<br />
revela-se na interayilo indissociavel entre tempo e espayo.<br />
22 Best (1990) analisa a cronotopia e a entropia na ohra Nand <strong>de</strong> Zola, na qual "A ayao da narrativa<br />
respeita a segunda lei da termodinfunica, isto e, evolui para a difusao reciproca dos valores <strong>de</strong> urn<br />
espayO num espayO oposto e rehenta num estado <strong>de</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m total". (Best, 1990, p.489).
termos, a rela
urn estudo comparativo do fenomeno da cronotopia no romance Educarao<br />
Sentimental <strong>de</strong> Gustave Flaubert e na pintura <strong>de</strong> Edouard Manet. 23<br />
Best (1994, p. 291) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a tese <strong>de</strong> que:<br />
"0 conceito do cronotopo nao esta restrito it analise <strong>de</strong><br />
romances, mas, como sugeriu Bakhtin, po<strong>de</strong> tambem ser aplicado a<br />
'outras areas da cultural, especialmente it area da pintura, na qual 0<br />
tempo esta 'intrinsecamente conectado' ao espayo, como no<br />
24<br />
romance".<br />
critica 0 pensador russo, por ter este consi<strong>de</strong>rado as fun90es figurativas e<br />
geradoras do cronotopo na obra <strong>de</strong> arte, apenas nurna perspectiva hist6rica. A<br />
enquanto manifesta90es artistic as que se realizam pelas imagens cronot6picas. 25<br />
23 Citemos alguns dos quadros <strong>de</strong> Edouard Manet estudados por Best (1994): l.Boating, 1874. (The<br />
Metropolitan Museum of Art); 2. Argenteuil, les canotiers, 1874 (Musee <strong>de</strong>s Beaux- Arts <strong>de</strong> Tournai);<br />
3. La serveuse <strong>de</strong> bocks, 1879 (Musee d' Orsay); 4. Un bar aux Folies-Bergere, 1882 (Courtauld<br />
Institute Galleries, London).<br />
24 Afirma Best (1989, p.979) que dada a aplicabilida<strong>de</strong> da nOyao da cronotopia e surpreen<strong>de</strong>nte 0<br />
siH~ncioda critica liteniria sobre esse importante topico da obra <strong>de</strong> Bakhtin.<br />
25 Frank (1972, p.245-247) retoma uma discussao iniciada por Lessing no Laocoonte. Conforme<br />
Frank, a forma <strong>de</strong> realizayao das artes phisticas e necessariamente espacial, ao passo que a literatura<br />
investe na temporalida<strong>de</strong>. Nos textos litenirios, utiliza-se a linguagem enquanto sucessao <strong>de</strong> palavras<br />
ligadas por uma or<strong>de</strong>m temporal. Frank comeya a rever essas i<strong>de</strong>ias e afmna que tanto a literatura,<br />
quanta as artes plasticas, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>de</strong> uma percepyao sensorial ancorada nas nOyoes <strong>de</strong> tempo e<br />
espayo. Bakhtin tambem faz referencia as contribuiyoes <strong>de</strong> Lessing para a discussao das relayoes entre<br />
tempo e espayo. Diz Bakhtin (1993a, p.356): "0 principio <strong>de</strong> cronotopia da imagem artistico-literana<br />
foi <strong>de</strong>scoberto pela primeira vez, com toda clareza, por Lessing no seu Laocoonte ".
Se consi<strong>de</strong>rarmos<br />
que Bakhtin privilegia a analise do romance por ser este<br />
urn genero que comporta diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagens e certo inacabamento<br />
cronotopo a outras manifesta90es<br />
esteticas. Por isso, sua abordagem constroi-se<br />
(1993a, p. 400), "[ ...] 0 romance introduz urna problematica, urn inacabamento<br />
semantico especifico e 0 contato vivo com 0 inacabado,<br />
com a sua epoca que<br />
esta se fazendo (0 presente ainda nao acabado)".26<br />
Alguns autores retomaram<br />
a n09ao da cronotopia para analisar textos da<br />
literatura latino-americana, produzidos na <strong>de</strong>cada <strong>de</strong> setenta. Nessa linha <strong>de</strong><br />
dos anOS setenta e as imagens cronotopicas representadas nas narrativas. Diz a<br />
como uma figura movel, <strong>de</strong>scontinua, com caracteristicas que ocasionalmente se<br />
exemplo, a crise da consciencia historica, na qual 0 homem pos-mo<strong>de</strong>mo<br />
tenta<br />
26 Bakhtin (1993a) estuda 0 romance como um genero que ainda esta evoluindo no meio <strong>de</strong> outros<br />
generos ja formados. 0 inacabamento semantico consiste nessa evoluyao do romance a partir do
49<br />
resgatar valores do passado, a fun <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r 0 momento presente. A<br />
autora parte do pressuposto que existe uma correla
50<br />
o poema e mais compacto e nao permite uma representa9ao<br />
espa90-temporal<br />
extensa, como nos romances ou contos.<br />
Conforme a autora, a melhor forma <strong>de</strong> compensar esse carater compacto<br />
da lirica e alcan9ar uma visao global e mais abrangente do cronotopo e estudar<br />
os tipos <strong>de</strong> rela90es espaciais e temporais nao apenas num poema, mas num<br />
conjunto <strong>de</strong> poemas.<br />
Segundo Laurin Porter (1991, p.369), a insistencia na n09ao da cronotopia<br />
como ponto central do trabalho artistico, no enfoque <strong>de</strong> Bakhtin, proporciona 0<br />
estudo <strong>de</strong> tal categoria em textos dramaticos. De acordo com Porter, a<br />
cronotopia po<strong>de</strong> ser aplicada as pe9as <strong>de</strong> Eugene O'Neill, visto que a produ9ao<br />
dramatica <strong>de</strong>ste revela que 0 uso do tempo e ressaltado como for9a controladora<br />
da experiencia humana. Nesse sentido, os textos <strong>de</strong> O'neill - A touch of the<br />
poet e More stately mansions -,<br />
analisados por Porter, apresentam varios niveis<br />
cronot6picos, cujos espa90s ganham significa9ao a partir do movimento do<br />
tempo.<br />
No que conceme a presente pesquisa, a n09ao do cronotopo nao po<strong>de</strong> ficar<br />
limitada apenas ao estudo do tempo e do espa90, enquanto elementos puramente<br />
estruturais do discurso narrativo. A investiga9ao dia16gica entre os indices<br />
temporais e espaciais <strong>de</strong>ve superar esse sentido restrito, a frm <strong>de</strong> atingir a
ea1· lza-se nmn tempo e num espa90.<br />
27<br />
Cremos que os poucos autores acima referidos sao suficientes para mostrar<br />
No presente trabalho, 0 estudo do cronotopo e <strong>de</strong> capital relevancia, na<br />
medida em que fomeceni<br />
instrumentos para a analise da organiza9ao da obra<br />
capitulo seguinte em que 0 cronotopo da estrada marca 0 dHllogo entre diferentes<br />
niveis cronot6picos e intefere na estratifica9ao lingiiistica da narrativa.<br />
27 Trataremos da fun9ao metaforica da cronotopia no pr6ximo capitulo, t6pico 2.1- Descoberta <strong>de</strong><br />
Sulida<strong>de</strong>: metafora da <strong>de</strong>scoberta do Brasil.
CAPiTULO 2<br />
o CRONOTOPO DA ESTRADA: mudan~a no plano espa~otemporal<br />
vs transforma~oes lingilisticas na obra Espa90 Terrestre<br />
"[...] os signos da estrada SaDos signos do<br />
<strong>de</strong>stino, etc. Por isso 0 cronotopo romanesco<br />
da estrada e ta~ concreto e circunscrito, tao<br />
impregnado <strong>de</strong> motivos folcl6ricos".<br />
(Bakhtin, 1993a, p. 242).<br />
contexto espa9o-temporal da cida<strong>de</strong>, 0 cronotopo da estrada e 0 cronotopo <strong>de</strong><br />
Sulida<strong>de</strong>. Esses tres niveis <strong>de</strong>stacam-se na narrativa, na medida em que dialogam<br />
entre si, evi<strong>de</strong>nciando a intera9ao indissociavel entre tempo-espa90. Neste<br />
o cronotopo da estrada assume capital relevancia em Espar;o Terrestre,<br />
pois permite-nos enten<strong>de</strong>r 0 processo <strong>de</strong> inter-rela9ao que come9a a surgir entre
transforma90es e evolu9ao <strong>de</strong> outro cronotopo, como veremos no capitulo<br />
Na abordagem <strong>de</strong> Bakhtin, 0 cronotopo da estrada e estudado em sua<br />
se, na estrada, unidos pelo po<strong>de</strong>r inexonivel do <strong>de</strong>stino, sem terem premeditado 0<br />
encontro. Conforme Bakhtin (1993a, p. 349-350),<br />
"No romance, os encontros ocorrem freqiientemente na<br />
'estrada'. Ela e 0 lugar preferido dos encontros casuais. [...]. A<br />
estrada e particularmente proveitosa para a representayao <strong>de</strong> urn<br />
acontecimento regido pelo acaso (mas nem s6 para isso)".<br />
ressalvando que, no romance Espa90 Terrestre, 0 encontro das personagens, na<br />
adapta90es da n09ao <strong>de</strong> Bakhtin sobre 0 contexto espa90-temporal da estrada,<br />
quando analisarmos a fun9ao <strong>de</strong>sse nivel cronotopico em Espa90 Terrestre.<br />
perspectiva espa90-temporal- marcada pelo dilliogocida<strong>de</strong>ltempo hist6rico - a<br />
all ' /' 28<br />
outra - espa90 rur tempo ClC lCO.<br />
28 Esses dois pI<strong>anos</strong> <strong>de</strong> temporalida<strong>de</strong> (tempo historico e tempo cfclico) silo estudados por Bakhtin<br />
(1993a). Explicaremos esses niveis no capitulo seguinte, no qual sera analisado 0 diillogo cronotopos,
Segundo Bakhtin (l993a, p. 349), 0 cronotopo da estrada mantem uma<br />
estreita relac;ao com 0 motivo tematico do encontro, quando individuos <strong>de</strong><br />
diferentes classes sociais reunem-se num mesmo ponto espac;o-temporal.E na<br />
estrada que, pela uniao dos individuos, as distancias sociais, raciais, lingiiisticas e<br />
Na obra objeto <strong>de</strong> nosso estudo, a ligac;aodo cronotopo da estrada com 0<br />
novo tipo <strong>de</strong> organizac;ao social. Por isso, 0 li<strong>de</strong>r daqueles que praticaram 0<br />
"Encontraram, jii mumificado, 0 cadaver dum vaqueiro.<br />
Resseco, duro, feito urn Judas <strong>de</strong> aleluia, <strong>de</strong>ntro da armadura<br />
coriacea, realmente em couro e ayO,que em vida usara em sua<br />
labuta na catinga espinhenta. Passaram por urna al<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> indios<br />
pacificos, mansos e <strong>de</strong>spreziveis, que em vez <strong>de</strong> abastacerem-nos<br />
com 0 que servisse <strong>de</strong> comer, assaltaram-nos, pedinch5es, os<br />
homens viilidos escondidos nas malocas, as mulheres, velhos e<br />
crianyas, com as vergonhas expostas, todas, as da miseria e as do
corpo [...]."<br />
(Espa90 Terrestre, p.59).<br />
Na estrada, embora a reuniao dos varios grupos <strong>de</strong> personagens seJa<br />
premeditada,<br />
como vimos, ha outros encontros <strong>de</strong>correntes do mero acaso, como<br />
ilustra a passagem acima. 0 encontro aci<strong>de</strong>ntal com os indios (vida) e com 0<br />
cadaver do vaqueiro (morte) remete-nos as consi<strong>de</strong>rac;oes <strong>de</strong> Bakhtin (1993a,<br />
p.349-350) sobre a estrada como lugar perfeito para os acontecimentos regidos<br />
pelo acaso. 0 encontro com a vida e a morte permite que as personagens reflitam<br />
repensem 0 passado na cida<strong>de</strong>, marc ado pe1as revoltas populares.<br />
as personagens, tao envolvidas em tomo do mesmo objetivo - encontrar outro<br />
tempo durante 0 exodo. Contudo, quando <strong>de</strong>fmitivamente param num local e<br />
<strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m concretizar seus objetivos, as personagens, num estado <strong>de</strong> epifania,<br />
comec;am a notar os vestigios do tempo, como se observa na citac;ao abaixo:<br />
"Jose Joaquim, embora <strong>de</strong>sbarrigado, tinha 0 corpo meio<br />
curvo. Albano e que se avantajara: mais robusto, <strong>de</strong> pele curtida e<br />
sombreada pela barba firme, cor <strong>de</strong> cenoura. Dito mudara a voz,<br />
<strong>de</strong>stoava nos agudos. Dionisia encorpara, peitos imensos, na<strong>de</strong>gas
alcochoadas. [...] Os burros do carroyao haviam morrido no<br />
caminho, urn dos jurnentos <strong>de</strong>saparecera [...]."<br />
(Espar;o Terrestre, p. 62-63).<br />
o espa90 ganha maior relevancia para as personagens que nao se dao<br />
conta do passar do tempo, dada a expectativa <strong>de</strong> encontrar outro plano espacial<br />
expectativas no futuro.<br />
o cronotopo da cida<strong>de</strong>, marcado pela sucessao <strong>de</strong> varios acontecimentos<br />
que provocam 0 exodo das personagens, como a morte <strong>de</strong> Frei Caneca, por<br />
exemplo, apresenta-se como passado a ser esquecido em prol <strong>de</strong> urn futuro<br />
promissor. Portanto, a estrada funciona como esp6cie <strong>de</strong> "ponte" entre urn<br />
Retomamos; neste momento, algumas id6ias <strong>de</strong> Pouillon sobre 0 tempo<br />
Bakhtin (1993a, p. 419) tamb6m observa a flui<strong>de</strong>z do tempo presente que
essencia, algo nao acabado: ele exige uma continuida<strong>de</strong> com todo 0<br />
seu ser. Ele marcha para 0 futuro e, quanta mais ativa e<br />
conscientemente ele vai adiante, para este futuro, tanto mais<br />
sensivel e mais notavel e 0 seu carater <strong>de</strong> inacabado".<br />
No romance Espm;o Terrestre, a estrada representa um momento <strong>de</strong><br />
transic;ao na vida das personagens que po<strong>de</strong> ser entendido a partir do diaIogo com<br />
o cronotopo do passado (Recife/tempo hist6rico) e 0 cronotopo do futuro<br />
pois os indices temporais e espaciais sao mais sugeridos que explicitados durante<br />
a viagem das personagens.<br />
Se, por uma parte, no cronotopo da cida<strong>de</strong> observa-se<br />
Na obra em analise, durante 0 exodo, 0 espac;o comec;a a ter malOr<br />
relevancia para as personagens, visto que a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> outro plano cronotopico<br />
implica a possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> encontrar uma situac;ao social diferente da metropole.<br />
A conquista <strong>de</strong> outro nivel espac;o-temporal representa a liberda<strong>de</strong>, tao almej ada<br />
pelas personagens que agora po<strong>de</strong>m concretizar seus sonhos.<br />
preen chido pelo sentido real da vida e entra numa re1ayao essencial com 0 heroi e
Como vimos, 0 cronotopo da estrada esta simbolicamente ligado ao motivo<br />
do encontro, por meio <strong>de</strong> imagens que representam a vida e a morte, esta<br />
projetando 0 futuro e aquela remontando<br />
ao passado da metr6pole. No romance<br />
em foco, 0 cadaver do vaqueiro evoca 0 contexto violento do passado no Recife,<br />
ao passo que 0 encontro com os indios sugere 0 futuro em outro cronotopo. Po<strong>de</strong>se<br />
esquematizar essa rela9ao entre os cronotopos da seguinte forma: 29<br />
CRONOTOPOl CRONOTOP02 CRONOTOP03<br />
• cida<strong>de</strong>/tempo hist6rico • a estrada: transi9ao <strong>de</strong> • campo/tempo cfclico<br />
urn plano espa90-<br />
• Recife/ Olinda temporal a outro • Sulida<strong>de</strong>/ Jirau/ Sitio<br />
• perda progressiva do<br />
referencial <strong>de</strong> tempo<br />
dos Alb<strong>anos</strong><br />
cronol6gico<br />
PASSADO PRESENTE FUTURO<br />
MaRTE ~ imagem do vaqueiro<br />
al<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> indios -+<br />
VIDA<br />
29 Sobre a quesHio simb6lica, parece-nos pertinente as palavras <strong>de</strong> Felicio (1994, p.96): "0 simbolo<br />
constitui-se como urn modo <strong>de</strong> conhecimento jamais a<strong>de</strong>quado e objetivo, pois nunca atinge urn objeto,<br />
tendo-se sempre como auto-suficiente, mensagem imanente do invisivel, jamais explicito".<br />
A<strong>de</strong>mais, a autora cita a concep9ao do simb6lico em Gilbert Durand: "A consciencia compreen<strong>de</strong> duas<br />
maneiras para se representar 0 mundo: urna direta, em que a pr6pria coisa parece presente it<br />
consciencia, como na percep9ao e sensa9ao; e outra indireta: oobjeto 6 representado para a consciencia<br />
por urna imagem". (cf. Gilbert Durand. L'Imagination symbolique, PUF, 1968). No romance, a ald6ia<br />
<strong>de</strong> indios e 0 cadaver do vaqueiro tomam-se simbolos, pois revelam-se como imagens que representam<br />
a vida (futuro) e a morte (passado), respectivamente.
o cronotopo da estrada tambem esta ligado ao motivo do encontro no nivel<br />
linguistico, atraves do qual personagens <strong>de</strong> diversos niveis sociais, culturais e<br />
economicos unem-se, proporcionado<br />
a interayao entre diferentes linguagens que<br />
comeyam a coexistir no mesmo ponto espayo-temporal. Parece-nos oportuno que<br />
a analise da cronotopia consi<strong>de</strong>re a organizayao da linguagem no universo<br />
romanesco, visto que a representayao lingliistica dialoga com imagens espayoessencial<br />
na composiyao da cronotopia, ja que, alem <strong>de</strong> dia16gicas, as<br />
(1993a). <strong>30</strong><br />
<strong>de</strong> diminuir as distancias sociais, raciais e culturais entre as personagens,<br />
contribui para atenuar as diferenyas lingUisticas, pela assimilayao e incorporayao<br />
<strong>30</strong> Nieves (1988), ao estudar 0 pape1 da linguagem e sua re1ayao com a cronotopia, analisa v<strong>anos</strong> niveis<br />
<strong>de</strong> recursos lingiiisticos, como 0 discurso indireto-livre, por exemplo, interligados it construyao da<br />
cronotopia na narrativa.
o encontro <strong>de</strong> varias personagens sera representado pela heterogeneida<strong>de</strong><br />
lingliistica presente nos varios niveis cronotopicos, como por exemplo, em<br />
Sulida<strong>de</strong>, Sitio dos Alb<strong>anos</strong> e Jirau, como veremos mais adiante. A linguagem,<br />
dialogicamente relacionada a mudanya <strong>de</strong> urn plano espayo-temporal a outro. Se<br />
por urn lado, no cronotopo Recife/tempo hist6rico, as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais e as<br />
temporal da estrada isso comeya a mudar a partir da uniao das personagens, 0<br />
Bakhtin (1993a, p.98) que a linguagem e "pluridiscursiva" no processo <strong>de</strong><br />
evoluyao e transformayao do contexto historico-social, e esc1arece:<br />
"Deve-se isso a coexistencia <strong>de</strong> contradivoes s6cioi<strong>de</strong>o16gicas<br />
entre presente e passado, entre diferentes epocas do<br />
passado, diversos gropos s6cio-i<strong>de</strong>o16gicos, entre correntes,<br />
escolas, circulos, etc., etc. Estes 'falares' do plurilingiiismo<br />
entrecruzam-se <strong>de</strong> maneira multiforme, formando novos 'falares'<br />
socialmente tipicos".<br />
romanesco, quanto em qualquer outro tipo <strong>de</strong> manifestayao artistic a, nao po<strong>de</strong> ser
que vise a interpreta9ao do romance como urn todo <strong>de</strong>ve consi<strong>de</strong>rar os varios<br />
niveis <strong>de</strong> linguagem que se intercruzam e estebelecem urn dialogo. 31<br />
Em Espar;o Terrestre, 0 carater pluridiscursivo da linguagem manifesta-se<br />
em dois niveis - regional e social - que se imbricam e se influenciam<br />
mutuamente. A cronotopia interfere na organiza9ao do plurilingliismo no<br />
romance, j a que as categorias espa90 e tempo dialogam com a linguagem nao<br />
apenas na configura9ao <strong>de</strong> uma situa9ao geognifica (espacial) e historica<br />
(temporal), mas tambem na <strong>de</strong>fmi9ao dos papeis sociais das personagens.<br />
31 Bakhtin (1995) critica a orientac;ao linguistica que pregava 0 estudo da lingua (langue) enquanto<br />
sistema isolado das manifestac;oes individuais (parole). A critica it abordagem <strong>de</strong> Saussure toma-se<br />
mais incisiva quando Bakhtin analisa 0 objetivismo abstrato. No prefacio it obra Marxismo e Filosojia<br />
da Linguagem (p.15), Marina Yague10 diz que "0 surpreen<strong>de</strong>nte, e que Bakhtin nao critica Saussure<br />
em nome da teoria marxista, largamente proc1arnada; e1e 0 critica no interior do seu proprio dominio,<br />
isto e, encontra a falha no sistema <strong>de</strong> oposic;ao lingua/fala, sincronia/diacronia". Criticando a<br />
perspectiva saussuriana e seus seguidores, Bakhtin (1995, p. 90) afrrma: "os representantes do<br />
objetivismo abstrato acentuam que 0 sistema linguistico constitui urn fato objetivo extemo it<br />
consciencia individual e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>sta. A lingua nao e urn sistema <strong>de</strong> normas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da<br />
consciencia social".
tempo-espaf;o influenciam<br />
as variantes dialetais, ao passo que no plano social, a<br />
estratificaf;ao lingliistica e <strong>de</strong>terminada pelo papel social das personagens.<br />
No romance Espa90 Terrestre, a interaf;ao dial6gica entre a linguagem do<br />
lingliistico, como consequencia da miscigenaf;ao entre as duas culturas e do<br />
intercfunbio entre esses cronotopos. 0 contato entre falares distintos resulta numa<br />
influencia mutua, j a que a representaf;ao da linguagem das personagens reflete as<br />
diferenf;as sociais e dialetais que comef;am a coexistir em <strong>de</strong>correncia do processo<br />
dial6gico entre os cronotopos. 0 diaIogo entre Sulida<strong>de</strong> e Jirau, por exemplo, cria<br />
pelos habitantes do primeiro nivel cronot6pico sofre mudanf;as na interaf;ao com a<br />
"Par influencia dos do Jirau, tambem 0 portugues europeu<br />
dos Marinheiros foi-se amenizando, trocando 0 tu pelo voce,<br />
per<strong>de</strong>ndo 0 trinado dos rr, 0 sincopado das silabas, a entona9ao<br />
dura, inexpressiva, ao inves se adocicando, acarinhando-se,<br />
32 A 1uz <strong>de</strong> Bakhtin, Maingueneau (1995) analisa 0 pluri1inguismo intemo e 0 extemo. Este e<br />
<strong>de</strong>terminado na re1~ao da obra literana com outras linguas, ao passo que aque1e apresenta 0 di31ogo da<br />
obra com a p1uralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dialetos <strong>de</strong> uma mesma lingua.
tomando 0 falar uma forma brincalhona <strong>de</strong> temura, nao uma<br />
imposiyao vocabular, impostura solene".<br />
(Espat;o Terrestre, p. 89)<br />
o dialeto utilizado no Jirau apresenta variantes em relayao ao <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong>,<br />
pOlS algumas expressoes como escola e igreja ganham novas formas, dada a<br />
economia lingiiistica que caracteriza 0 falar no Jirau, como veremos na citayao<br />
"A comodida<strong>de</strong> do linguajar nativo transformara a escola<br />
em scula, e a igreja em gueja". (Espat;o Terrestre, p. 112).<br />
Observemos as transformayoes que os vocabulos escola e igreja sofrem<br />
<strong>de</strong> aferese, isto e, "uma mudanya fonetica que consiste na queda <strong>de</strong> urn fonema<br />
inicial ou na supressao da parte inicial (uma ou mais silabas) <strong>de</strong> uma palavra".<br />
estratificayao lingiiistica esta dialogicamente relacionada com a multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
como propos Bakhtin<br />
(1993a), reflete as marcas do contexto espayo-temporal,<br />
modificado na narrativa a partir dos movimentos migratorios das personagens.
Na rela9aOdialogica com 0 contexto historico-social do mundo empirico,<br />
Espa90 Terrestre assimila 0 plurilingfiismo social, isto e, as diversida<strong>de</strong>s<br />
lingfiisticas presentes em camadas sociais diferentes e, a partir do processo <strong>de</strong><br />
ficcionaliza9ao, mimetiza essas variantes sociais. 0 plurilingfiismo no romance<br />
esta diretamente subordinado ao dialogismo, sendo este entendido no nivel das<br />
rela90es entre a obra literana e 0 contexto mais amplo que envolve 0 processo<br />
historico-social. AMm disso, 0 carater plurilingfie da obra em foco apresenta-se<br />
por meio do diaIogo entre os cronotopos, na perspectiva da dialogicida<strong>de</strong> intema,<br />
como ja referimos no primeiro capitulo. Nessa perspectiva, a cronotopia e 0<br />
plurilingfiismo estao ligados ao dialogismo em vilrios niveis, seja num sentido<br />
amplo - dialogo obra <strong>de</strong> arte e contexto historico-social- seja numa dimensao<br />
64<br />
mais restrita -<br />
dialogo entre elementos constitutivos da organiza9ao textual, ou a<br />
dialogicida<strong>de</strong> intema, <strong>de</strong>fmida por Bakhtin (1993a).<br />
o plurilingfiismo social manifesta-se em dois pI<strong>anos</strong> interligados. Num<br />
primeiro, as personagens comunicam-se usando dia/etos sociais diferentes <strong>de</strong><br />
acordo com 0 cronotopo que organiza as manifesta90es linguisticas e os papeis<br />
sociais das personagens. Os espa90s Sulida<strong>de</strong> e Sitio dos Alb<strong>anos</strong> apresentam 0<br />
dialeto dos portugueses, ao passo que 0 Jirau revela a linguagem do povo mesti90.<br />
No segundo nivel, 0 carater heterogeneo da linguagem revela-se na
organiza9ao dos fa/ares <strong>de</strong> diferentes classes sociais, uma vez que, ao praticarem<br />
o exodo, divers as personagens (padre, ferreiro, negros, brancos, ricos ou pobres)<br />
encontram-se num mesmo ponto espayo-temporal.<br />
"[...] a lingua nao e um sistema abstrato <strong>de</strong> formas<br />
normativas, porem uma opiniao plurilingiie concreta sobre 0<br />
mundo.[...] Cada palavra evoca um contexto ou contextos nos<br />
quais ela viveu sua vida socialmente tensa; todas as palavras e<br />
formas sao povoadas <strong>de</strong> inten90es".<br />
romance em estudo, cada usa lingiiistico esta subordinado a situayao espayo-<br />
Como vimos, no cronotopo da estrada, as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s<br />
sociais, raciais,<br />
tempo cic1ico, investe-se em novas formas <strong>de</strong> relayoes sociais. A linguagem, que<br />
segundo Bakhtin e essencialmente dial6gica no sentido <strong>de</strong> refletir e refratar as
circunstancias SOCIalSe historicas <strong>de</strong> urn grupo, certamente soften! algumas<br />
No<br />
espa
linguagem toma-se instrumento <strong>de</strong> expressao do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> resgatar as origens,<br />
tanto no nivel espa
68<br />
proprio nome Sulida<strong>de</strong>, que servlU para batizar 0 local <strong>de</strong>scoberto, e uma<br />
representayao da pronuncia lusa <strong>de</strong> soleda<strong>de</strong> (solidao). 0 termo Sulida<strong>de</strong> indica,<br />
assim, a solidao das personagens<br />
que se isolam tanto no plano espayo-temporal,<br />
quanto no lingiiistico, conservando uma forma <strong>de</strong> falar, mais proxima do dialeto<br />
portugues.<br />
o dialeto usado em Sulida<strong>de</strong> parece manter-se mais fiel ao codigo escrito,<br />
respeitando as normas impostas pela gramatica culta, ao passo que a<br />
representayao do uso lingiiistico no Jirau aproxima-se mais do referencial popular<br />
<strong>de</strong> cunho oral, marc ado pelo maior nlimero <strong>de</strong> rupturas com as regras gramaticais.<br />
A linguagem que indica, conforme a perspectiva bakhtiniana, as<br />
circunstancias sociais e i<strong>de</strong>ologicas, toma-se urn instrumento extremamente<br />
importante para as personagens que lutam verbalmente, a fun <strong>de</strong> impor seu ponto<br />
<strong>de</strong> vista e <strong>de</strong>limitar seu espayo social. Como afmna Maingueneau (l996a, p. 10),<br />
o uso da linguagem <strong>de</strong>fme os papeis sociais a partir do espayO que cada individuo<br />
ocupa no momento da enunciayao.<br />
Apoiados no ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> Bakhtin <strong>de</strong> que a linguagem nao so e<br />
essencialmente<br />
dialogica e plurilingiie, mas tambem, cronotopica, pois reflete as<br />
transformayoes sociais e hist6ricas, po<strong>de</strong>mos notar como 0 uso que as<br />
personagens fazem do discurso esta intimamente ligado as situayoes espayo-
temporais. Na rela'(ao que se estabelece entre plurilingliismo, cronotopia e<br />
dialogismo em Espw;o Terrestre, ganham interesse as conexoes dial6gicas entre<br />
esse romance e fatos hist6ricos, por um lado, e lendas, crendices populares, por<br />
Consi<strong>de</strong>rando 0 dialogismo como processo <strong>de</strong> incorpora'(ao e<br />
plurilingiie do romance <strong>de</strong>ve ser analisado a partir <strong>de</strong>ssa orienta'(ao dial6gica da<br />
linguagem. 33<br />
seja, para obtermos uma compreensao global da abordagem <strong>de</strong> Bakhtin, e sem<br />
numa perspectiva diacronica e sincronica, sao fundamentais na constru'(ao <strong>de</strong> urn<br />
33 Neste momento, consi<strong>de</strong>ramos 0 terceiro myel do dialogismo apresentado no prirneiro capitulo, isto<br />
6, as relayoes dialogicas que se instauram entre textos e enunciados anteriores ou posteriores no<br />
momento da interayao comunicativa. Nesse sentido, 0 dialogismo esta proximo do fen6meno da<br />
intertextualida<strong>de</strong>, como ja referirnos.
cria
cita90es <strong>de</strong> outros textos litenrrios, como no exemplo a seguir, em que a<br />
caracteriza9ao fisica da personagem Sarra alu<strong>de</strong> it representa9ao romantic a <strong>de</strong><br />
"Contudo, <strong>de</strong>slumbravam-Ihes a pele azeitonada <strong>de</strong> Saira,<br />
seus longos cabelos - da cor da asa da grauna - suas formas<br />
atrativamente perfeitas, que 0 vestido <strong>de</strong> Jesuina, espaventoso,<br />
embora severo, nao conseguia escon<strong>de</strong>r."<br />
(Espar;o Terrestre, p. 80).<br />
Nesse nivel, a intertextualida<strong>de</strong><br />
funciona <strong>de</strong> forma endoliteraria, ja que as<br />
Na composi9ao do mundoficcional, a partir da representa9ao do passado<br />
hist6rico, manifesta-se a intertextualida<strong>de</strong>, principalmente do tipo exoliteraria,<br />
que estabelece 0 dialogo entre Espar;o Terrestre e outros textos que se aproximam<br />
introduzidas<br />
no romance para fomecer a precisao do tempo crono16gico sobre a<br />
35 Aguiar e Silva (1988) afmna que 0 intertexto po<strong>de</strong> ser reve1ado implicitamente, atraves <strong>de</strong> alusoes, e<br />
explicitamente, a partir <strong>de</strong> citayoes. Acrescenta 0 autor que a intertextualida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser endoliteniria ou<br />
exoliteniria, em funyao do intertexto. Segundo Aguiar e Silva (1988, p. 629), "no caso da<br />
intertextualida<strong>de</strong> exoliteraria, 0 intertexto e constituido quer por textos nao verbais - urn texto<br />
pict6rico, por exemplo, po<strong>de</strong> ter importantes relayoes intertextuais com urn texto literario -, quer por<br />
textos verbais nao litermos: obras historiograficas, filos6ficas, cientificas, ensaios, artigos <strong>de</strong> jomais,<br />
livros didaticos, enciclopedias, etc. No caso da intertextualida<strong>de</strong> endoliteraria, 0 intertexto e<br />
constituido por textos litermos."
"Quanto a temerida<strong>de</strong> dos insurgentes, nao correu tudo a<br />
contento. 0 frances, seu amigo, leu certo dia, <strong>de</strong> suas notas<br />
semanais: 'Domingo, 25 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1817. - A revolu~ao <strong>de</strong><br />
Pernambuco terminou a 20, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter durado dois meses e<br />
meio. A 18 recebeu-se do comandante da esquadra a resposta as<br />
propostas <strong>de</strong> acordo: prometia que a cida<strong>de</strong> seria poupada se os<br />
chefes se entregassem a c1emencia <strong>de</strong> sua majesta<strong>de</strong>. A 19, as<br />
tropas foram reunidas, arengadas e excitadas a <strong>de</strong>fesa.' "<br />
(Espa90 Terrestre, p.37). (grifo nosso)<br />
No cronotopo da cida<strong>de</strong>, observa-se a precisao com 0 tempo hist6rico,<br />
hist6ricos. A temporalida<strong>de</strong> e posta em relevo, por seu caniter dinfunico na<br />
"[...] 0 texto litenirio se insere no conjunto dos textos: e<br />
uma escritura-replica (fun
o ficcional, 0 autor organiza sua obra e assume totalliberda<strong>de</strong><br />
no sentido <strong>de</strong> criar<br />
uma nova maneira <strong>de</strong> se <strong>de</strong>scobrir a Hist6ria. 36<br />
Do nosso ponto <strong>de</strong> vista, na obra Espa90 Terrestre, a retomada do passado<br />
hist6rico esta diretamente relacionada a varios fatores, <strong>de</strong>ntre os quais citamos: a<br />
compreensao da situac;ao presente do homem brasileiro e a procura <strong>de</strong> uma<br />
"[...] os fatos do passado, formadores <strong>de</strong> uma especie <strong>de</strong><br />
superestrutura <strong>de</strong> iluminayao do presente, ensejam sempre<br />
inquietu<strong>de</strong>s e indagayoes que tem a ver com a busca permanente do<br />
homem: frente a si mesmo e aos <strong>de</strong>mais, ele e compelido a explicar<br />
a propria condiyao. 0 romance e uma <strong>de</strong> suas fontes mais<br />
instigantes".<br />
Diz Bakhtin (1993a, p. 263) que e praticamente<br />
impossivel 0 reflexo <strong>de</strong><br />
uma epoca, sem a ligac;ao com 0 carater tridimensional do tempo, em que<br />
passado, presente e futuro fun<strong>de</strong>m-se na representac;ao <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado contexto<br />
relac;ao com 0 passado e 0 futuro, per<strong>de</strong> a unicida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>compoe-se em fenomenos<br />
36 Afmna Ricoeur (1997, p. 176-177) sobre 0 processo dia1ogico entre narrativa ficcional e narrativa<br />
historica: "0 problema sera, entao, mostrar como a refigurayao do tempo pela historia e pela ficyao se<br />
concretiza grayas a emprestimos que cada modo narrativo toma do outro. Esses emprestimos<br />
consistirao no fato <strong>de</strong> que a intencionalida<strong>de</strong> historica so se efetua incorporando it sua intenyao os<br />
recursos <strong>de</strong> jicciona!iza9tio que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m do imaginario narrativo, ao passo que a intencionalida<strong>de</strong> da<br />
narrativa <strong>de</strong> ficyao s6 produz os seus efeitos <strong>de</strong> <strong>de</strong>tecyao e <strong>de</strong> transformayao do agir e do pa<strong>de</strong>cer
e coisas isoladas, toma-se urn conglomerado abstrato".<br />
A atualizayao do passado, em Esparo<br />
Terrestre, e realizada por meio da<br />
representayao <strong>de</strong> fatos hist6ricos e <strong>de</strong> lendas, como tambem, crendices populares<br />
Por meio <strong>de</strong> urn discurso que representa ficcionalmente alguns dados<br />
fatuais, tais como, a Revolta <strong>de</strong> Canudos, a Insurreiyao Pemambucana, por<br />
exemplo, a obra Esparo<br />
Terrestre tambem resgata 0 passado <strong>de</strong> outra forma. A<br />
"Homem, nao teria <strong>de</strong> acreditar que os pelos do rabo do<br />
cavalo postos num caco <strong>de</strong> agua viravam besouros; que a<br />
concubina do padre se transformava em mula-sem cabeya e a noite,<br />
sem motivo aparente, saia em <strong>de</strong>sabalada correria pelos campos; e<br />
que havia uma classe <strong>de</strong> individuos que viravam lobo e enquanto<br />
nao estavam uivando para a Iua <strong>de</strong>stinavam-se a atacar quem Ihes<br />
aparecesse pela frente". (Esparo Terrestre, p. 9).<br />
assumindo simetricamente os recursos <strong>de</strong> historicizac;ao que the oferecem as tentativas <strong>de</strong> reconstruyao<br />
do passado efetivo".
"Feitosinha, 0 afilhado mais velho do padre Feitosa, que 0<br />
ajudava na missa e se preparava para oportunamente substitui-Io no<br />
vicariato, ao dirigir-se it igreja, antes das seis da manha, para bater 0<br />
sino, viu-se cercado dum nevoeiro espesso, que 0 <strong>de</strong>sorientava e<br />
como que 0 conduzia ao meio da praya. Ai 0 nevoeiro esgaryou-se e<br />
<strong>de</strong>le surgiram tres negrinhos vestidos <strong>de</strong> pierro, abrayados, pulando<br />
numa perna so, a entoar uma cantiguinha que ele enten<strong>de</strong>u assim:<br />
- Nhen-nhen-gaga! Nhen-nhen-gaga!<br />
Suas bocas eram formadas por tres brasinhas e <strong>de</strong>las saiam<br />
pequenas bolas <strong>de</strong> fumaya, como se eles pitassem".<br />
(Espa90 Terrestre, p.118).<br />
representados no mundo da fic
Essa lenda, muito conhecida principalmente no cemrrio nor<strong>de</strong>stino,<br />
introduz a figura da 11comadre florzinha", como popularmente e conhecida a<br />
personagem <strong>de</strong>scrita no romance <strong>de</strong> Gilvan Lemos.<br />
Como observa-se, dialogicamente ligadas ao contexto espa90-temporal <strong>de</strong><br />
Sulida<strong>de</strong>, as lendas folcl6ricas assumem gran<strong>de</strong> relevancia para as personagens<br />
76<br />
que come9am a resgatar mitos e crendices presentes nas narrativas<br />
orais. Por<br />
outro lado, no cronotopo da cida<strong>de</strong> (Recife/ tempo hist6rico), os fatos hist6ricos<br />
sao postos em relevo, uma vez que 0 dinamismo da temporalida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>terminante<br />
para as personagens.<br />
Assim, a cronotopia estrutura os varios niveis discursivos no romance,<br />
revelando-se como especie <strong>de</strong> principio organizador do plurilingliismo que se<br />
manifesta em diversos pI<strong>anos</strong>.<br />
No cronotopo Recife/tempo hist6rico, as referencias hist6ricas sao<br />
frequentes no sentido <strong>de</strong> se <strong>de</strong>fmir cronologicamente 0 plano temporal e situar as<br />
personagens<br />
em <strong>de</strong>terminado espa90. Nesse cronotopo, 0 tempo e marc ado pela<br />
precisao com que os fatos hist6ricos acontecem e pela multiplicida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> epis6dios<br />
que interferem na vida das personagens,<br />
imigrantes, a Insurrei9ao Pemambucana,<br />
como 0 movimento <strong>de</strong> persegui9ao aos<br />
entre outros.
Apos a transiyao, marcada pelo cronotopo da estrada, as personagens<br />
<strong>de</strong>scobrem outro plano espayo-temporal (Sulida<strong>de</strong>/tempo hist6rico) em que os<br />
indices temporais e espaciais opoem-se aos do cronotopo da metropole.<br />
Em Sulida<strong>de</strong>, a vagueza das marcas temporais interfere nas manifestayoes<br />
lingiiisticas, como vimos. Alem do plurilingiiismo no plano social, a<br />
77<br />
heterogeneida<strong>de</strong> discursiva e consequencia do nivel regional, na medida em que 0<br />
cemirio do campo, representado por Sulida<strong>de</strong>, confere maior sentido a<br />
prolifera
abaixo, na qual Jose Albano conversa com Andreza sobre a Revolta <strong>de</strong> Canudos,<br />
epis6dio em que provavelmente os pais da menina teriam morrido:<br />
"-Meus pais, Jose Albano, nunca <strong>de</strong>ram noticia.<br />
Jose Albano <strong>de</strong>teve a faca no rolo <strong>de</strong> furno, surpreso <strong>de</strong> ela<br />
ainda os ter no pensamento:<br />
- Morreram ha muito tempo.<br />
- Como 0 senhor sabe?<br />
- Morreram numa guerra que houve no sermo da Bahia,<br />
Faz muitos <strong>anos</strong>, foi antes da passagem do seculo. Eles e mais os<br />
seguidores do santo aconselhador a quem haviam se juntado.<br />
Milhares e milhares <strong>de</strong> penitentes, nao ficou um pra contar a<br />
hist6ria. Cercados pelo exercito brasileiro, que os julgava<br />
criminosos, s6 se entregaram mortos. 0 Monte-Santo foi cenario e<br />
palco duma se9ao do inferno. Seus pais <strong>de</strong>viam estar no meio<br />
<strong>de</strong>les, dos penitentes, minha filha.<br />
- Mas como 0 senhor sabe?<br />
- Ouvi falar."<br />
(Espa90 Terrestre, p.168-169) (grifo nosso)<br />
passagem<br />
do seculo. Diferente do cronotopo do Recife em que os fatos hist6ricos<br />
oral que evi<strong>de</strong>ncia a imprecisao das personagens no tratamento<br />
do tempo. Essa
79<br />
Na cita9ao aClffia, nota-se que Jose Albano refere-se it<br />
Revolta <strong>de</strong><br />
Canudos, apoiando-se na tradi9ao oral - Ouvi fa/ar - talvez para ocultar que<br />
tivera conhecimento do fato historico quando se ausentara durante algum tempo<br />
<strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong>. Apos a morte da esposa, Jose Albano foge <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong> e busca outro<br />
plano espa90-temporal. No entanto, os episodios que envolvem a personagem fora<br />
do contexto <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong> sao ocultados pelo narrador, constituindo-se; assim, urn<br />
caso <strong>de</strong> elipse temporal.<br />
Segundo Bal (1985, p. 71), nos casos em que ocorre a e1ipsetemporal, tudo<br />
o que 0 1eitorpo<strong>de</strong> fazer e <strong>de</strong>duzir que algo foi omitido, <strong>de</strong> acordo com algumas<br />
pistas apresentadas na narrativa. A<strong>de</strong>mais, na perspectiva do autor, 0<br />
acontecimento omitido, ou melhor, 0 conteudo da elipse, po<strong>de</strong> parecer nao<br />
necessariamente tao importante, ou pelo contrario, ser bastante significativo. Na<br />
obra em analise, a elipse ganha significa9ao, pois apesar <strong>de</strong> Jose Albano ter<br />
abandonado Sulida<strong>de</strong> e provavelmente ter conhecido 0 "Brasil", ele retoma ao<br />
ponto <strong>de</strong> origem por nao conseguir se libertar daque1e tempo-espa90. As<br />
maldi90eS <strong>de</strong> Bilisa ainda nao haviam cessado e, assim, as gera90es dos Alb<strong>anos</strong><br />
nao conseguem fugir do cronotopo <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong>, ou melhor, da repeti9ao dos<br />
mesmos <strong>de</strong>stinos. Para 0 leitor nao fica claro em que tempo-espa90 Jose Albano<br />
esteve quando <strong>de</strong>ixa Sulida<strong>de</strong>, como veremos no trecho abaixo:
"JOSE ALBANO s6 REAPARECEU EM SULIDADE<br />
nove <strong>anos</strong> <strong>de</strong>pois. Do que andou fazendo'durante esse tempo ou<br />
<strong>de</strong> on<strong>de</strong> tinha vindo jamais comentou com alguem. Afetava urn<br />
ar distraido, ausente, se tocavam no assunto".<br />
(Espw;o Terrestre, p. 131) (grifo nosso).<br />
Como se po<strong>de</strong> observar, a personagem tenta esquecer 0 passado e as<br />
situac;5es que vivera quando estivera ausente <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong> em outro tempo-espac;o.<br />
Assim, quando retoma a vila dos portugueses, Jose Albano omite as experiencias<br />
referencias hist6ricas e folcl6ricas, 0 quadro abaixo <strong>de</strong>ixara mais claro 0 que<br />
CIDADE / TEMPO HISTORICO CAMPO/TEMPO CfCLICO<br />
• malOr numero <strong>de</strong> referencias • predominio <strong>de</strong> narrativas oralS e<br />
hist6ricas que contextualizam as folcl6ricas revividas pelas<br />
personagens no tempo e no espa
significado tematico, quando 0 diaIogo tempo-espa~o esta intimamente ligado a<br />
Vejamos como a imagem cronot6pica e apresentada no espa~o urbano,<br />
quando 0 tempo e marcado pelo dinamismo <strong>de</strong> varios acontecimentos hist6ricos<br />
que interferem na vida das personagens. A cita~ao abaixo <strong>de</strong>screve os cen<strong>anos</strong><br />
"[...] Olinda continuava a ser a capital da provincia, embora 0<br />
Recife ja a ultrapassasse em numero <strong>de</strong> habitantes, movimento<br />
comercial e tudo mais, tendo avan~ado da ilha on<strong>de</strong> se originara<br />
ate as outras vizinhas e alcan~ado 0 continente, dando mostra <strong>de</strong><br />
que pretendia dilatar-se, enquanto Olinda minguava em seu<br />
ressentido orgulho, nostalgica dos antigos faustos, os mesmos que<br />
tinham <strong>de</strong>spertado a cobiya dos holan<strong>de</strong>ses, ha quase dois seculos.<br />
Incendiando Olinda e instalando-se no Recife, que nesse tempo nao<br />
passava <strong>de</strong> pequena al<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> pescadores, os holan<strong>de</strong>ses 0<br />
valorizavam e 0 tomaram mais importante que Olinda, assim a<br />
<strong>de</strong>rrotando duas vezes".<br />
(Espa90 Terrestre, p. 18) (grifo nosso).<br />
no mundo da fic~ao e travam uma especie <strong>de</strong> luta para conquistar 0 papel da<br />
capital da provincia. Recife e Olinda apresentam-se, pois, como espa~os m6veis<br />
37 Alem do significado temlitico, Bakhtin (l993a, p.355) estuda 0 significado figurativo da eronotopia,<br />
segundo 0 qual os acontecimentos do enredo ganham maior for
conferem maior dinamismo it narrativa. 38<br />
No caso em analise, 0 tempo e 0 espa90 da Historia contextualizam a vida<br />
das personagens no inicio do seculo com as transforma90es verificadas em<br />
dialoga com a representa9ao do tempo e espa90 na narrativa (historia), categorias<br />
moveis e dinfunicas que participam do universo romanesco. 39<br />
elementos que <strong>de</strong>terminam as a90es do enredo e apresentam uma estrutura<br />
significativa (simbolica) na narrativa. Como afmna Candido (1995, p. 45), as<br />
sem sentido no <strong>de</strong>senvolvimento dos acontecimentos, tomam-se elementos que<br />
prefiguram a a9ao da narrativa.<br />
38 Afirma Bal (1988, p.95) que 0 espa90 funciona <strong>de</strong> duas formas numa narrativa.<br />
1- Acting p1ace- espa90 dinamicamente representado;<br />
2- Place of action- espa90 como elemento estatico.<br />
No primeiro tipo, 0 espa90 e objeto <strong>de</strong> sua pr6pria representa9ao, e antes lugar ativo e dinfunico que<br />
simp1esmente 0 local da a9ao. No segundo tipo, 0 espa90 e apenas 0 local da a9ao e funciona como<br />
uma moldura que situa as personagens e os acontecimentos.<br />
39 Segundo Boumeuf e Ouellet (1981, p. 116),0 espa90, no romance, reveste-se <strong>de</strong> multiplos sentidos<br />
ate constituir-se, as vezes, na razao <strong>de</strong> ser da obra.
Como vimos, 0 cronotopo da estrada e <strong>de</strong> capital importancia no romance<br />
em foco, pois representa uma mudanya <strong>de</strong> plano espayo-temporal,<br />
aMm <strong>de</strong> estar<br />
relacionado ao plurilingliismo (social e regional).<br />
A estrada propicia 0 diaIogo entre urn cronotopo e outro, tambem no plano<br />
metaf6rico, como veremos a seguir em que a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser<br />
interpretada como especie <strong>de</strong> metafora da "<strong>de</strong>scoberta" do Brasil.<br />
2.1- DESCOBERTA DE SULIDADE: METAFORA DA DESCOBERTA DO<br />
'BRASIL<br />
o estudo da cronotopia possibilita uma anaIise da organizayao da obra<br />
Espa90 Terrestre sob 0 aspecto formal, consi<strong>de</strong>rando-se a rela
84<br />
no seculo XVI. Alguns epis6dios no romance po<strong>de</strong>m ser explicados com base em<br />
certos fatos hist6ricos, como a vinda dos colonizadores portugueses ao Brasil, a<br />
celebra
"Serras, serrotes e penhascos, rios secos, rios <strong>de</strong> aguas<br />
partidas; rios longinquos - como estiletes refletindo os raios do<br />
sol - cortavam matas que s6 por eles se <strong>de</strong>ixavam ferir. Jose<br />
Joaquim agarrava 0 bra
A partir do dialogo instaurado entre 0 mundo representante -<br />
a realida<strong>de</strong><br />
empirica historicamente situada -<br />
e 0 mundo representado na narrativa, parece<br />
evi<strong>de</strong>nte que 0 contato <strong>de</strong> Albano e Ramires com a nova terra (Sulida<strong>de</strong>),<br />
representa, simbolicamente, a chegada dos colonizadores portugueses ao Brasil.<br />
Po<strong>de</strong>mos estabelecer uma rela9ao dial6gica com esse e outros epis6dios do<br />
romance e algumas passagens da Carta <strong>de</strong> Pero Vaz Caminha, documento <strong>de</strong><br />
"Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra<br />
o suI vimos ate outra ponta que contra 0 norte vem, <strong>de</strong> que nos <strong>de</strong>ste<br />
porto houvemos vista, sera tamanha que haveni ne1a bem vinte ou<br />
vinte e cinco leguas por costa. Tern, ao longo do mar, nalgurnas<br />
partes, gran<strong>de</strong>s barreiras, <strong>de</strong>las vermelhas, <strong>de</strong>las brancas, e a terra<br />
por cima toda chff e muito cheia <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s arvoredos. De ponta a<br />
ponta, e tudo praia-palma, muito chffe muito formosa".<br />
(Moises, 1996, p.l?)<br />
Na obra em estudo, 0 epis6dio da primeira missa rezada na nova terra<br />
"Sem mais 0 que comentar, puseram os carroyoes ern<br />
circulo, vestiram as melhores roupas, prepararam cozidos,
postaram-se diante do ministro <strong>de</strong> Deus, para ouvir a primeira<br />
missa no novo mundo <strong>de</strong>les. "<br />
(Espa90 Terrestre, p.63).<br />
Na carta <strong>de</strong> Caminha, tambem ha registro do fato hist6rico da primeira<br />
"Chantada a Cruz, com as armas e a divisa <strong>de</strong> Vossa<br />
Alteza, que primeiramente the pregaram, armaram altar ao pe <strong>de</strong>la.<br />
Ali disse missa 0 Padre Frei Hemique, a qual foi eantada e ofieiada<br />
por esses ja ditos".<br />
(Moises, 1996, p.17).<br />
Assim como os primeiros colonizadores portugueses, os recem-chegados a<br />
Sulida<strong>de</strong> acreditavam ser 0 novo espa~o <strong>de</strong>scoberto completamente inabitado.<br />
Contudo, Ramires e Albano encontram-se com outra comunida<strong>de</strong>, urn povo<br />
"Em <strong>de</strong>terminado momento viram-se atropelados por uma<br />
turba <strong>de</strong> negros, armados uns <strong>de</strong> espingardas <strong>de</strong> matar passarinho,<br />
outros <strong>de</strong> areos e fleehas. Num relance <strong>de</strong>u para ver que eram<br />
negros diferentes, alguns <strong>de</strong>les <strong>de</strong> eabe10s longos, eseorridos.<br />
Vestiam tangas, havendo, entre e1es, varios completamente<br />
<strong>de</strong>snudos. Albano COyou-se,numa menyao <strong>de</strong> saear a pistola, Jose<br />
Joaquim 0 <strong>de</strong>teve:<br />
-Nao me consta que sejam hostis. [...].<br />
Em pouco tempo sairam num <strong>de</strong>seampado. Vindas <strong>de</strong> toda<br />
parte, veredas se cruzavam, em <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, ate se juntarem numa<br />
{mica, que eonduzia a especie <strong>de</strong> al<strong>de</strong>ia em que penetraram, meio<br />
india, meio africana, repleta <strong>de</strong> malocas, muitas <strong>de</strong>las elevadas<br />
sobre jiraus".<br />
(Espa90 Terrestre, p. 68).
Essa situayao tambcm nos parece amiloga as origens do Brasil, quando os<br />
colonizadores portugueses <strong>de</strong>sconheciam, a principio, a existencia do povo nativo<br />
que ja habitava 0 solo brasileiro.<br />
No romance em foco, 0 encontro <strong>de</strong> Ramires e Albano com 0 povo do Jirau<br />
brasileiro, na cpoca <strong>de</strong> nossa colonizayao. AMm disso, a enfase no carater mestiyo<br />
do povo do Jirau nos conduz a interpretayao da pluralida<strong>de</strong> do povo brasileiro,<br />
composto por urn conjunto <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, diferentes rayas e culturas que se<br />
"as cabelos seus sao corredios. E andavarn tosquiados, <strong>de</strong><br />
tosquia alta, rnais que <strong>de</strong> sobre-pente, <strong>de</strong> boa grandma e rapados ate<br />
por cirna das orelhas. E urn <strong>de</strong>les trazia por baixo da solapa, <strong>de</strong> fonte<br />
a fonte para <strong>de</strong>tnis, urna especie <strong>de</strong> cabeleira <strong>de</strong> penas <strong>de</strong> aye<br />
arnarelas, que seria do cornprirnento <strong>de</strong> urn coto, rnui basta e rnui<br />
cerrada, que Ihe cobria 0 toutiyo e as orelhas".<br />
(Moiscs, 1996, p.1S).<br />
respeito a falta <strong>de</strong> disposiyao ao trabalho dos portugueses que chegam a Sulida<strong>de</strong>,<br />
po<strong>de</strong>r econ6mico, exploravam a forya <strong>de</strong> trabalho dos negros vindos da Africa.
Como explicamos anteriormente, antes da vmgem ate 0 novo tempoespa90,<br />
as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais entre as personagens eram mais acentuadas, dada<br />
uma organiza9ao social baseada na explora9ao do trabalho escravo. A cita9ao<br />
abaixo apresenta a chegada dos negros afric<strong>anos</strong> para refor9ar 0 trabalho escravo<br />
na metr6pole:<br />
"Negros recem-chegados d'Africa, uns na forya da ida<strong>de</strong>,<br />
machos e femeas, crianyas e ate velhos, agrupavam-se frente aos<br />
armazens, it espera <strong>de</strong> compradores. Encurralados, submissos, sem<br />
aparentar nenhuma vonta<strong>de</strong> consciente <strong>de</strong> fuga ou <strong>de</strong> revolta, tal 0<br />
estado em que se encontravam, espalhavam-se, <strong>de</strong>sligados <strong>de</strong><br />
afeiyao ou afinida<strong>de</strong> uns com os outros."<br />
(Espar;o Terrestre, p. 20).<br />
Se no espa90 urbano, observa-se a luta <strong>de</strong> classes por meio das acentuadas<br />
<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais entre as personagens, no cronotopo da estrada, as distancias<br />
(sociais, economicas, lingliisticas) tomam-se mais tenues diante da ansia <strong>de</strong><br />
no novo espa90, logo batizado <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong>, as personagens <strong>de</strong>scobrem que<br />
"Os Marinheiros, que por <strong>anos</strong> tinham explorado a forya<br />
dos escravos, viam-se diante dum dilema jamais por eles<br />
imaginado. Calejar as maos, cobri-Ias <strong>de</strong> bolhas, <strong>de</strong>forma-Ias no<br />
cabo da picareta, do formao, da enxada, da gadanha, era obrigayao<br />
<strong>de</strong> negro, os negros e que tinham nascido para trabalhar em<br />
beneficio dos brancos". (Espar;o Terrestre, p.72).
Por 1SS0, quando estahefecem contato com a popufa~ao mesti~a do Jrrau,<br />
tentam ohter a mao-<strong>de</strong>-ohra necessaria a constru~ao d-a vITa<strong>de</strong> Sufida<strong>de</strong>. No<br />
entanto, 0 povo do Jrrau nao aceita trabalhar para os portugueses, 0 que fica daro<br />
na citayao abaixo:<br />
"Nao obstante, as insatisfayoes prosseguiam. Os que tinham<br />
dinheiro <strong>de</strong> sobra propunham-se a pagar 0 serviyo dos que 0<br />
tfnham <strong>de</strong> menos, mas estes nao podiam aten<strong>de</strong>r satisfatorfamente<br />
aqueles~ necessitavam <strong>de</strong> suas pr6prias foryas para a execuyao e<br />
consecuyM <strong>de</strong> seu futuro patrimonio. Tentou-se, em troca <strong>de</strong><br />
pagamento em especie, a colabora~ao dos negros do Jirau, mas<br />
os neg-ros, <strong>de</strong>sconfiados, nao aceitaram as propostas. Para esses<br />
insatisH~itosso havia uma altemativa: voltar para 0 Brasil".<br />
(Espa90 Terrestre, p. 74-75). (grifo nosso).<br />
Tamhem, os portugueses que aqui chegaram no secufo XVI, tinham por<br />
ohjetivo expforar a terra, mas nao estavam acostumados ao trabalho arduo,<br />
necessario para se concretizar 0 processo <strong>de</strong> colonizayao exploradora. Por essa<br />
razao, tentaram escravizar os indios~estes nao se adaptaram ao trabalho escravo e<br />
portugueses cofonizadores eram <strong>de</strong>gredados, tambem 0 sao as personagens do<br />
verda<strong>de</strong>rra origem a Afbano Varefa:<br />
"Meu pai era caseiro dum gran<strong>de</strong> la da Terra, minha mile<br />
uma pobre fateira. Ganhei a cida<strong>de</strong> do Porto, meti-me em<br />
politicagens, fui obrigado a matar um gran<strong>de</strong> que me <strong>de</strong>sfeiteou.<br />
Cheguei ao Brasil como <strong>de</strong>gredado. Vim para Pernambuco,
aproveitei oportunida<strong>de</strong>s, casei:'-mecom uma rfca~a, liz-me na<br />
vida". (Espar;o Terrestre, p. 67) (grifo nosso).<br />
No que conceme a analogia entre a obra Espar;o Terrestre e a <strong>de</strong>scoberta<br />
do Brasil, dois epis6dios da narrativa ainda merecem ser discutidos: a chegada <strong>de</strong><br />
Ap6s sail' <strong>de</strong> Portugal, VareIa chega ao Brasil como <strong>de</strong>gredado e tenta<br />
encontrar urn emprego que !he proporcionasse certa estabilida<strong>de</strong> economlca. A<br />
chegada ao Brasil representa a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> outro plano espayo-temporal, no<br />
qual a personagem, <strong>de</strong> inlcio, nao consegue se adaptar. 1S80 expIica porque 0<br />
primeil'o Albano "nao conseguia enten<strong>de</strong>r satisfatoriamente aqueIa nayao <strong>de</strong><br />
brancos, negros, indios e mulatos". (Espafo<br />
Terrestre, p.18).<br />
o primeil'o contato <strong>de</strong> Nuno Varela com 0 Brasil e apresentado na citayao<br />
"ALBANO NUNO<br />
VARELA FORA TRAZIDO numa<br />
canoa, <strong>de</strong>sembarcado no cais do trapiche, jogado a terra como<br />
volume duma mercadoria qualquer [...].<br />
Cegava-o aquela inesperada clarida<strong>de</strong> tropical,<br />
revolviam-Ihe 0 estomago aqueles odores nauseantes,<br />
agressivos, <strong>de</strong> oleos e gorduras carregados, penetrantes,<br />
enjoativos. [...].<br />
Contudo, fora dificil a adapta9ao ao mundo novo que se Ihe<br />
oferecia. Esquecido dos projetos a
Observe-se como Varefa comeya a <strong>de</strong>scobrir 0 novo espayO atraves do<br />
plano sensorial, uma vez que a visao e 0 offato se revefam como sentidos<br />
importantes na percep
(Sufida<strong>de</strong>). No novo cronotopo, as gerayoes dos Alb<strong>anos</strong> suce<strong>de</strong>m-se ate surgir<br />
Jose Alhano Neto que nao se adapta ao marasmo <strong>de</strong> SuIida<strong>de</strong> e parte para 0<br />
Brasil. Fecha-se, assim, 0 cicIo das gera90es quando a imagem do prunerro<br />
Alhano Iiga,.sea do ultimo, unidas pela <strong>de</strong>scoherta do Brasil.<br />
Dada a rela9ao diaIogica da ohra em foco com a <strong>de</strong>scoherta do Brasil,<br />
revela-se, a nosso ver, pertinente a posi9ao <strong>de</strong> Kristeva (1974, p. 86),<br />
"[...] tudo 0 que se escreve hoje <strong>de</strong>svenda uma<br />
possibilida<strong>de</strong> ou uma impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ler e <strong>de</strong> rescrever a<br />
hist6ria. Esta possibiTida<strong>de</strong>e palpavef na Hteratura que se anuncia<br />
atraves dos escritos <strong>de</strong> uma nova geravao, on<strong>de</strong> 0 texto se constr6i<br />
enquanto teatro e enquanto leitura".<br />
o romance <strong>de</strong> Gtlvan Lemos e construfdo enquanto possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se<br />
que remonta as proprias origens da coTonizay:aono Brasil, metaforicamente<br />
representada pefa <strong>de</strong>scoherta <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong>.<br />
Segundo Baklitin (1993a, p.358), a partir do dialogismo entre a ohra <strong>de</strong><br />
originam-se dos cronotopos reais do mundo empfrico. Esse dialogo entre 0<br />
cronotopia, nao so como <strong>de</strong>terminante da estrutura9ao formal e simb6lica do
essaftar que, como afrrmou Bakhtin (1993a, p. 360), nao obstante 0 mundo<br />
representado no universo ficcional apresentar urn carater reaIista, 0 Ieitor nao<br />
po<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar, <strong>de</strong> forma direta, as imagens espa90-temporais<br />
da narrativa com<br />
as do munao real, representante.<br />
Na obra em estudo, a imagem cronotopica esta aialogicamente Iigada ao<br />
contexto social e hist6rico da reaIida<strong>de</strong> brasileira do inicio do seculo XIX a<br />
meados do seculo XX, aIem <strong>de</strong> metaforicamente<br />
representar urna volta as origens<br />
da coloniza9ao brasiIeira.<br />
Espar;o Terrestre reveIa-se, assim, como uma hist6ria sobre a Hist6ria, na<br />
medina em que os acontecimentos artisticamente representados no moodo da<br />
fiC9ao dialogam com certos fatos hist6ricos empiricamente<br />
situados, tais como: a<br />
chegada dos colonizadores ao Brasil no sec. XVI, a reaIizac;ao da primeira missa<br />
em solo brasileiro, 0 contato dos portugueses com os indios.<br />
No romance em foco, a atuaIizac;ao <strong>de</strong> um passado que remonta as origens<br />
do Brasil, a partir da <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong>, assinala 0 processo <strong>de</strong> incorporac;ao<br />
e transfigurac;ao do cronotopo da Hist6ria no cronotopo da hist6ria<br />
A <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> SuIida<strong>de</strong> liga-se ao passado em dois nfveis. Por um lado,<br />
no processo dial6gico entre 0 mundo representante e 0 representado,<br />
nos termos<br />
<strong>de</strong> Bakhtin (1993a), a chegada ao novo espac;o, na narrativa, toma-se uma
epresenta9ao simb6lica da <strong>de</strong>scoberta do Brasil no seculo XVI. Por outro lado, 0<br />
novo referendal cronot6pico, marcado pelo espa90 <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong> e por urn tempo<br />
ciefico, dialoga com 0 cronotopo da cida<strong>de</strong>, como veremos no pr6ximo capitulo.<br />
CAPITULO 3<br />
r . , ,<br />
o DIALOGO ENTRE DOIS NIVEIS CRONOTOPICOS:<br />
(cida<strong>de</strong>- tempo hist6ricolcampo-<br />
tempo cfclico)<br />
"Em arte e em Iiteratura, todas as<br />
<strong>de</strong>finiyoes espayo-temporais SaD insepaniveis<br />
urnas das outras e SaD sempre tingidas <strong>de</strong> urn<br />
matiz emocional".<br />
(Bakhtin, 1993a, p. 349)<br />
Na obra Espa90 Terrestre, po<strong>de</strong>mos analisar a cronotopia em sua relac;ao<br />
com 0 dialogismo em varios nfveis. No capitulo anterior, vimos 0 dialogo entre 0<br />
cronotopo representante - no nfvel da Hist6ria - e 0 cronotopo representado<br />
na narrativa ficc10nal (hist6ria). Alem <strong>de</strong>ssa perspectiva dial6gica, as imagens<br />
espa90-temporais estao intimamente relacionadas, na medida em que 0<br />
movimento do tempo e representado, tambem, pela multipIicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> imagens
organizayao intema da obra -<br />
na perspectiva da dialogicida<strong>de</strong> intema como<br />
propos Bakhtin (1993a) -<br />
0 diaIogo entre vclriosnfveis cronot6picos estrutura a<br />
narrativa e evi<strong>de</strong>ncia urn caniter dinfunico nas relayOes espayo-temporais. Sob<br />
esse aspecto, interessa-nos anaIisar a intera9ao entre dois gran<strong>de</strong>s cronotopos<br />
(dda<strong>de</strong>/tempo hist6rico - campo/tempo cfcIico), no sentido <strong>de</strong> mostrar a<br />
importancia da cronotopia na organiza9ao dialogica do romance. 43<br />
Conforme Bakhtin (I993a, p. 357), diversos cronotopos po<strong>de</strong>m coexistir<br />
<strong>de</strong>ntro da organiza9ao do discurso romanesco, ou meIhor, os cronotopos po<strong>de</strong>m<br />
se opor ou se entrefa9ar, fundmdo-se numa so imagem espa90-temporaI que<br />
Em Espafo Terrestre, 0 diaIogismo entre os cronotopos existe, na medida<br />
em que, primordialmente, dois nfveis espa90-temporais adquirem papeI<br />
fundamental no <strong>de</strong>senvoIvimento da narrativa: 0 tempo hist6rieo e 0 espa90 do<br />
Recife, opOem-se a vila mftica <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong> e ao tempo eiclieo. Esses dois<br />
cronotopos, aparentemente antiteticos, dialogam entre si, quando SuIida<strong>de</strong><br />
No espa90 urbano, representado pdo<br />
Recife (a metr6poIe), 0 tempo<br />
43 Explicaremos a relayao entre a cronotopia e 0 segundo nfvel do dialogismo - dialogicida<strong>de</strong> intema<br />
- como referimos no primeiro capitulo. Em Espa90 Terrestre, as imagens espac;o-temporais<br />
manifestam-se dialogicamente relacionadas na arquitetura intema da narrativa.
97<br />
hist6rico adquire malOr relevo do que 0 espa
do carater ciclico do tempo.<br />
N a obra em analise, a sensac;ao <strong>de</strong> que 0 tempo esta parado e provocada<br />
pela repetic;ao dos mesmos fatos, como, por exemplo, a morte das esposas dos<br />
Alb<strong>anos</strong>; epis6dio que se repete durante quatro gerac;oes seguidas. Por conta<br />
disso, 0 tempo revela-se como especie <strong>de</strong> "prisao" (confmamento),<br />
enquanto que<br />
o espac;o, constituido pela realida<strong>de</strong> rural, cobra relevancia. Essa situac;ao e oposta<br />
ao contexto da cida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> a noc;ao do passar do tempo toma-se mais evi<strong>de</strong>nte<br />
pela rapida sucessao dos acontecimentos hist6ricos.<br />
Ao representar<br />
Sulida<strong>de</strong>, 0 sitio dos Alb<strong>anos</strong> e 0 Jirau, como diferentes<br />
pI<strong>anos</strong> espaciais, a narrativa ganha maior significac;ao a partir da dinamismo<br />
multiplicida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> cenarios dialogicamente ligados a natureza repetitiva do tempo.<br />
Nesse sentido, parece-nos que 0 nivel espacial e mais <strong>de</strong>stacado, 0 que se observa<br />
na pr6pria escolha do titulo do romance - Espa90 Terrestre - como tentativa<br />
<strong>de</strong> abarcar 0 espac;o em sua totalida<strong>de</strong>. 44<br />
Como se observa, uma imagem cronot6pica toma-se 0 reflexo invertido da<br />
outra, ou seja, 0 espac;o <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong> e 0 tempo ciclico representam<br />
tudo aquilo<br />
que se opoe ao mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> vida das personagens no cronotopo da metr6pole.<br />
Durante . 0 exodo, marc ado pelo cronotopo da estrada, a perda do
eferencial <strong>de</strong> tempo crono16gico contribui para 0 processo <strong>de</strong> isolamento das<br />
personagens que abandonam 0 contato com a metr6pole. Por isso, 0 tempo passa<br />
a funcionar como algo secundario, enquanto que 0 espac;o e privilegiado. Diante<br />
<strong>de</strong> urn tempo cic1ico, presente em Sulida<strong>de</strong>, as personagens aceitam 0 espac;o<br />
como refugio,<br />
marc ado pela utopia, pela liberda<strong>de</strong> e pelas novas relac;oes sociais.<br />
personagens e seus <strong>de</strong>stinos, ja que 0 meio parece revelar novas expectativas.<br />
" [Sr.Ramires] 0 que queria mesmo era viver em paz.<br />
Voltar para Portugal nao podia. Safra <strong>de</strong> hi porque .... Ravia<br />
qualquer irregularida<strong>de</strong>, certo encalhe. Bern, nao podia. Sua<br />
id6ia era reunir-se com os patricios, juntar fundos e meios, ganhar<br />
as brenhas, criar no sertao bravio uma esp6cie <strong>de</strong> falansterio."<br />
(Espa90 Terrestre, p. 49-50) (grifo nosso)<br />
combinado com 0 conhecimento do genero da obra, ja restringe consi<strong>de</strong>ravelmente 0 percurso <strong>de</strong><br />
leitura".
publica, faremos algumas aproximayoes em relayao ao comportamento das<br />
100<br />
personagens na narrativa. Segundo 0 autor (I993a, p. 244), a vida privada<br />
nao<br />
exige urn observador que possa juIga-la, ao passo que a vida publica,<br />
"como<br />
qualquer acontecimento que tenha algum sentido social, dirige-se ao publico,<br />
pressupoe obrigatoriamente urn espectador, urnjuiz, urn avaliador [...I".<br />
Em Espafo<br />
Terrestre, no cronotopo espayOurbano/tempo hist6rico, mais<br />
distantes <strong>de</strong> suas origens, as personagens vivem a vida publica,<br />
tendo que<br />
reprimir os segredos mais fntimos, pois a socieda<strong>de</strong> Ihes impoe <strong>de</strong>terminado<br />
comportamento social. Contudo, no espayOmitico <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong> e no tempo C£clico,<br />
a vida privada revela,..separa as personagens que agora concretizam seus sonhos,<br />
liberam suas fantasias, pois nao ha a opiniao publica para avalia-Ias e julga-Ias.<br />
No ambiente rural, 0 equilibrio do homem com a natureza favorece a revelayao da<br />
verda<strong>de</strong>, visto que as personagens ja nao precisavam mais representar para manter<br />
as aparencias SOCIalS.<br />
Se, por urn lado, 0 cronotopo do Recife e marcado pelas lutas sociais e<br />
poHticas entre as personagens, por outro, 0 contexto espayo-temporal <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong><br />
mantem-se diretamente relacionado a temas como: a dimensao ut6pica das novas<br />
reIal;oes sociais entre as personagens, a procura <strong>de</strong> urna socieda<strong>de</strong> mais justa e<br />
igualitaria, 0 resgate dos mitos populares, entre outros. Nesse contexto, a
diversida<strong>de</strong> espacial e mais evi<strong>de</strong>nte, ja que Sulida<strong>de</strong>, 0 S£tio dos Alb<strong>anos</strong> e 0<br />
Jirau SaG pI<strong>anos</strong> espaciais relevantes para a compreensao cronot6pica da<br />
narrativa. SuIida<strong>de</strong> representa 0 espac;oda comunida<strong>de</strong> branca, em oposic;aoao<br />
Jirau, uma especie <strong>de</strong> quilombo habitado pela populac;ao mestic;a, froto da<br />
miscigenac;aoentre negros e indios. 0 sitio dos Alh<strong>anos</strong> funciona como espac;o<br />
mediador entre os dois nfveis apresentados, ao mesmo tempo em que confere<br />
maior individuaIida<strong>de</strong> a familia dos Alb<strong>anos</strong>. Esses tres n£veis espaciais<br />
(SuIida<strong>de</strong>, Jirau e S£tiodos Alb<strong>anos</strong>) estabelecem um diaIogo, na perspectiva da<br />
dialogidda<strong>de</strong> intema, numa relac;ao<strong>de</strong> complementac;ao.<br />
Sulida<strong>de</strong> opoe-se <strong>de</strong> certa forma ao Jirau, no entanto, a partir do processo<br />
<strong>de</strong> misdgenac;ao, 0 diaIogo entre os dois cronotopos apresenta-se mais forte e as<br />
oposic;oesentre eIes comec;ama ser atenuadas. 0 inido da misdgenac;ao entre os<br />
portugueses <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong> e 0 povo do Jirau da-se com 0 casamento <strong>de</strong> Albano<br />
Varela e Sarra -<br />
neta do H<strong>de</strong>r do Jirau. Assim, 0 espac;odos Alb<strong>anos</strong> fundona<br />
como ponto <strong>de</strong> Iigac;aoentre Sulida<strong>de</strong> e 0 Jirau, na medida em que os Alb<strong>anos</strong> se<br />
unem ao povo da comunida<strong>de</strong> mestic;a e <strong>de</strong>pois influendam as mudanc;as <strong>de</strong><br />
habitos dos portugaeses da vila.<br />
A interac;aoentre personagens <strong>de</strong> espac;osdistintos provoca mudanc;asnos<br />
habitos <strong>de</strong> cada comunida<strong>de</strong>. Como exemplo, a presenc;a <strong>de</strong> Sarra em Sulida<strong>de</strong>
modifica a vida das personagens da vila:<br />
"Saira acabava <strong>de</strong> implantar em Sulida<strong>de</strong> 0 habito do banho<br />
diario. Assim como, mais tar<strong>de</strong>, incentivaria a miscigena9ao.<br />
Rapazes e ate senhores maduros nao <strong>de</strong>moravam a ir ao Jirau<br />
buscar as companheiras que lhes faltavam: todas da mais pura<br />
branquida<strong>de</strong>. Dai a serie <strong>de</strong> meninos sararis, mulatos c1arosou<br />
escuros que come9aram a nascer na vila".<br />
(Espac;o Terrestre, p. 81).<br />
o dialogismo instaura,.se na integrac;ao entre os diferentes nfveis espaciais,<br />
ja que os cronotopos se opciem, se confrontam e se entfelac;am <strong>de</strong> forma<br />
dinfunica. Esse dinamismo no plano espaciaI <strong>de</strong>staca-se em func;ao do caniter<br />
estatico que 0 tempo assume no romance, ria parte referente a vida em Sulida<strong>de</strong>,<br />
mais especificamente<br />
no sitio dos Alb<strong>anos</strong>.<br />
o tempo dcIico e marcado pela ausencia <strong>de</strong> mudanc;as, ja que os mesmos<br />
BiIisa, 0 carater estatico do tempo transforma-se e provoca 0 <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> abandonar<br />
Sulida<strong>de</strong>, a prindpio<br />
tido como espac;o-refUgio, para retomar ao ponto <strong>de</strong> partida<br />
"Brasil", ja que as personagens, tao isoladas no tempo-espac;o, acreditavam que a
METROPOLE (0 urbano) SULllADE, JIRAU, strIo (0 rural)<br />
• tempo hist6rico (carater dinfunico da • tempo ciclico (carater estatico da<br />
temporalida<strong>de</strong>)<br />
temporalida<strong>de</strong>)<br />
• vida publica<br />
• vida privada<br />
• opressao, sentimento <strong>de</strong> revolta • harmonia das personagens com a<br />
popular e insatisfa9ao das natureza (equilibrio entre as<br />
personagens com 0 contexto personagens eo mem social)<br />
hist6rico-social<br />
• a temporalida<strong>de</strong> assume malOr • 0 espa90 toma-se mats importante<br />
importancia na vida das personagens. para as personagens que per<strong>de</strong>m 0<br />
Espa90= confmamento referencial tempo-crono16gico. 0<br />
espa90 funciona como refugio.<br />
Espa90 = liberda<strong>de</strong><br />
SuIida<strong>de</strong>, espa90 recem-<strong>de</strong>scoherto,<br />
e 0 cenario da utopia, das supersti90es,<br />
da Iiberda<strong>de</strong>, da busca por urna socieda<strong>de</strong> livre. 0 espa90 adquire urn papel mais<br />
significativo, ao passo que 0 tempo ciclico coloca as personagens frente a frente<br />
com seus pr6prios <strong>de</strong>stinos, sendo quase impossivel fugir da repeti9ao dos
ca
Como se observa na citayao acima, 0 tempo modifica,.se em SuIida<strong>de</strong>, uma<br />
vez que as imagens dia e noite se confun<strong>de</strong>m, <strong>de</strong>ixando as personagens<br />
<strong>de</strong>sorientadas. A mudanya no tempo, seguem-se as transformayoes no espayo, tais<br />
Enquanto Sulida<strong>de</strong> comeya a evoluir, transformando-se cronotopicamente e<br />
acompanhando 0 <strong>de</strong>senvolvimento da metr6pole, 0 Jirau toma conhecimento do<br />
progresso da vila:<br />
«A entrada do Jirau, Chefe Goma os esperava com sua<br />
comitiva. Albano, surpreso, notou mudan9as. Ravia casas, algumas<br />
prontas, outras em constfU9ao,alinhadas em feitio <strong>de</strong> rua; gran<strong>de</strong><br />
galpao coberto <strong>de</strong> palha com uma placa. Escola; e 0 come90 duma<br />
igreja, com pare<strong>de</strong>s ja elevadas. Chefe Goma estava hem<br />
inform ado do que se fazia em Sulida<strong>de</strong>."<br />
(Espa90 Terrestre, p.82) (grifo nosso).<br />
Os niveis espaciais esHio estreitamente Iigados, uma vez que espayos,<br />
contradiyoes sociais do espayo metropolitano. AIem disso, as personagens<br />
comeyam a se distanciar <strong>de</strong> seus mitos, <strong>de</strong> suas origens, a proporyao que espayo e<br />
tempo se transformam, acompanhando a evoluyao do cronotopo da cida<strong>de</strong>.<br />
Vejamos como Bilisa e esquecida pelas personagens, quase no [mal da hist6ria:
HE Bilisa? Poucos a lembravam. Nio mais aparecia<br />
frente it gueja? Nio prestavam aten~io. As lendas, as vezes<br />
tambem morrem. E a igreja ainda em constrU
e<strong>de</strong>as no cavalo, voltar pra 0 sossego do seu lar. [...J Voce <strong>de</strong>ve<br />
estar caducando, velho. Volte pra casa. [...]".<br />
(Espa90 Terrestre, p. 253-254) (grifo nosso).<br />
Nao encontrando os sinais do passado que buscava, Jose Albano se sente<br />
perdido, pois ja nao sabe se aquilo que vivera e as personagens que conhecera<br />
personagem que, no passado, conhecera 0 Jirau. A repeti9ao da palavra velho<br />
personagens jovens, ou meIhor, urn passado perdido nas transforma90es<br />
questiona-se e duvida das recorda90es que ainda !he restavam do passado ja<br />
esquecido pela maior parte dos habitantes <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong>:<br />
"E se realmente nada daquilo tivesse acontecido? Perdido,<br />
apagado do presente, 0 passado existia? Batia-se no peito, furioso:<br />
Eu existo? Com tanta coisa <strong>de</strong> sua vivencia ja fora <strong>de</strong>le, perdida,<br />
esfumada, dava para <strong>de</strong>sconfiar.<br />
Afastou-se, dirigiu 0 cavalo para 0 alto. Queria ver,<br />
certificar-se <strong>de</strong> que 0 Jirau existira, correra no sangue <strong>de</strong> suas<br />
veias. Mas so via <strong>de</strong>sola~ao, mato <strong>de</strong> germina~ao recente. E<br />
cercados, bois <strong>de</strong> engorda, casas esparsas <strong>de</strong> moradores da<br />
fazenda. Impossivel distinguir os lugares <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>le<br />
lembran~as. On<strong>de</strong> ficava a gueja e a pedra <strong>de</strong> BiIisa? A<br />
resi<strong>de</strong>ncia central dos Chefes Goma, Agora, Giru, on<strong>de</strong> ? .."<br />
(Espm;o Terrestre, p. 254) (grifo nosso).
acordo com os movimentos migrat6rios das personagens, os quais indicam, por<br />
urn lado, uma abertura para 0 mundo (movimento progressivo)<br />
e, por outro, urn<br />
fechamento espayo-temporal (movimento regressivo). 45<br />
o movimento <strong>de</strong> abertura espayo-temporal, que sugere urna<br />
progressivida<strong>de</strong>, e observado no cronotopo da estrada -<br />
marca <strong>de</strong> transiyao <strong>de</strong><br />
urn plano espayo-temporal (cida<strong>de</strong>/tempo hist6rico)<br />
a outro (Sulida<strong>de</strong>/tempo<br />
cida<strong>de</strong>, marcado pelo dinamismo dos acontecimentos hist6ricos. 0 <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />
origem para se conhecer 0 contexto em que se vivia na cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>. No dialogo<br />
45 Ao estabe1ecer essa distin((ao entre dois niveis <strong>de</strong> movimentos em Espac;o Terrestre, nos baseamos<br />
em Rocha (1977, p. 180) que analisa 0 espa((o na obra "Cria((ao do mundo" <strong>de</strong> Miguel Torga. Segundo<br />
a autora, "[ ...] 0 espa((o fisico <strong>de</strong>scoberto pelo her6i sujeita-se ao impulso <strong>de</strong> dois movimentos<br />
aparentemente contradit6rios, urn progressivo <strong>de</strong> abertura para 0 mundo, e oUtro regressivo <strong>de</strong><br />
fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> as origens".
"- 0 senhor nunca teve vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> voltar a Terra, ou ao Brasil?<br />
- Nada <strong>de</strong>ixei nesses lugares.<br />
_. Nem por curiosida<strong>de</strong>? Nem <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ouvir os relatos do<br />
Hermes Vasconcelos?<br />
- Antes me diga, por que 0 Hermes nao quis mais voltar?<br />
Conheyo tudo aquilo. Ha eertas eoisas na vida que nao mudam,<br />
nunea mud am, jamais se modifieam, filho.<br />
- Pois eu tenho vonta<strong>de</strong>, pai, <strong>de</strong> conhecer outras coisas."<br />
(Espac;o Terrestre, p. 94). (grifo nosso)<br />
Nuno Varela, que ja vivera em Portugal e no Recife, nao tern sauda<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong>sses espa~os, pois estes simbolizam sofrimento, perdas, conflitos. A morte dos<br />
pais fizera ele abandonar sua terra nataL Chegando ao Recife, a morte <strong>de</strong> Frei<br />
Caneca 0 induz a refletir sobre as dificulda<strong>de</strong>s e revoltas populares na metr6pole.<br />
o contexto violento da cida<strong>de</strong> provoca 0 exodo <strong>de</strong> Varela e das <strong>de</strong>mais<br />
personagens a outro tempo-espa~o (Sulida<strong>de</strong>).<br />
Ao contrario <strong>de</strong> Nuno Varela, Albano Filho <strong>de</strong>seja conhecer a metr6pole,<br />
pois nao tern a experiencia do pai e nao conhece outros lugares. Albano Filho<br />
acha que Sulida<strong>de</strong> e marcada pelo marasmo e pela falta <strong>de</strong> perspectivas futuras,<br />
se modificam, filho parece estar presente uma explica~aopara 0 carater ciclico do<br />
tempo-espa~o, marcado por uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pI<strong>anos</strong> espa~o-temporais, que<br />
ora se op5em, ora se completam no <strong>de</strong>senvolvimento da narrativa. A sensa~ao e<br />
que as imagens espa~o-temporais nunca mudam, nao se modificam, j a que, nao
obstante a evolu9ao dos niveis cronot6picos <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong> e do Jirau, as<br />
personagens reencontram-se com uma situa9ao similar ao contexto da cida<strong>de</strong>,<br />
apresentado antes do exodo. Na parte fmal da narra9ao, as personagens voltam ao<br />
ponto <strong>de</strong> partida (Recife/tempo hist6rico), como se nada houvesse mudado, ou<br />
melhor, como se 0 tempo e 0 espa90 ainda fossem os mesmos numa especie <strong>de</strong><br />
revolu9ao em drculo que retoma 0 cronotopo da cida<strong>de</strong>.<br />
o movimento regressivo, que marca a volta das personagens ao cronotopo<br />
da cida<strong>de</strong>, e favorecido pela constru9ao <strong>de</strong> uma estrada ligando Sulida<strong>de</strong>, bem<br />
como 0 Jirau e 0 sitio dos Alb<strong>anos</strong>, ao resto do tlBrasil". Assim, a imagem da<br />
estrada e retomada no fmal da hist6ria, unindo 0 cronotopo <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong> ao<br />
"Os pr6prios habitantes da vila, beneficiados pela<br />
estrada que passava a poucos quilometros, excursionavam com<br />
facilida<strong>de</strong>s ate entao <strong>de</strong>sconhecidas ao lendario Brasil,<br />
informados <strong>de</strong> que, <strong>de</strong>pois da guerra - tinha havido uma guerra<br />
- 0 pais navegava em bonan
forasteiros reforyam 0 carater lendario do Brasil e <strong>de</strong>spertam 0 <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> retornar<br />
a metr6pole recifense.<br />
o movimento regressivo tambem se estabelece em relayao ao espayo<br />
conquistado pelos Alb<strong>anos</strong> que se isolam nurn sitio, a dois ou tres qui!ometros <strong>de</strong><br />
distancia <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong>, 0 que provoca urn insulamento maior da familia dos<br />
Alb<strong>anos</strong>. 0 fechamento espacial propicia 0 retorno as origens e ao passado, uma<br />
vez que Albano Nuno Varela tenta construir, no sitio, um ambiente familiar,<br />
"Dedicar-se-ia a cria9ao <strong>de</strong> cabras, tinha experiencia, fora<br />
pastor <strong>de</strong> ovelhas, na Terra. Por isso estabeleceu-se a dois ou tres<br />
quilometros da vila. Queria sua casinha no mol<strong>de</strong> da dos pais,<br />
on<strong>de</strong> nascera, <strong>de</strong> pedra e tijolo, piso <strong>de</strong> lajes, cobertura <strong>de</strong><br />
telhas <strong>de</strong> barro. Levasse 0 tempo que levasse, construf-Ia<br />
assim."<br />
(Espar;o Terrestre, p. 74). (grifo nosso).<br />
A partir <strong>de</strong>sses movimentos <strong>de</strong> abertura espayo-temporal (progressivo),<br />
<strong>de</strong> circulo, do qual as personagens tentam achar a saida, mas nao conseguem.
(<strong>de</strong>scoberta do mundo)<br />
movimento regressivo<br />
"Nao raro, Ii noite, Albano perdia 0 sono, e ficava a pensar<br />
no seu <strong>de</strong>stino, na <strong>de</strong>termina
outra escolha? Fora a morte que 0 orientara na vida; a morte,<br />
que guiara seus passos. Espantavam-no, da Terra, as mortes do<br />
pai e da mae; do Recife, a do fra<strong>de</strong> espingar<strong>de</strong>ado no largo das<br />
Cinco Pontas. E daqui? Deveria espanta-Io a do amigo<br />
Ramires?" •<br />
(Espa90 Terrestre, p. 77) (grifo nosso).<br />
A familia dos Alh<strong>anos</strong> parece assumir 0 papel do heroi tnlgico, aquele que<br />
<strong>de</strong>stino. Os Alh<strong>anos</strong> reconheciam que nao podiam <strong>de</strong>safiar a maldiyao <strong>de</strong> Bilisa,<br />
personagem mitica que representa, metaforicamente, urn oHiculo, antecipando 0<br />
futuro e provocando medo nas personagens. 0 proprio nome Bilisa e urn<br />
anagrama <strong>de</strong> Sibila, personagem mitologica que possuia 0 dom da profecia.<br />
tlEra Bilisa que falava, uma velha cinzenta, <strong>de</strong> carapinha<br />
arrepiada, olhos vermelhos, 0 cachimbo pendurado na beiyola:<br />
- Esse branco tem calor <strong>de</strong> sangue. 0 froto <strong>de</strong>le mata.<br />
Calor <strong>de</strong> sangue! Arrenego!t!.<br />
(Espar;o Terrestre, p. 79).<br />
das esposas. Dada a ausencia da figura materna, a rela
continuida<strong>de</strong> da figura do avo. Cada avo projetava seus sonhos e expectativas na<br />
figura dos netos, os quais representavam 0 renascimento <strong>de</strong> todas as gerayoes.<br />
A figura materna e quase completamente apagada no romance, salvo Sai, a<br />
mae do ultimo Albano que ja esta imune a maldiyao <strong>de</strong> Bilisa. Parece-nos que 0<br />
ocultamento da figura feminina relaciona-se com os movimentos migrat6rios dos<br />
Alb<strong>anos</strong>, visto que, a imagem da mulher simboliza a Terra, a Patria, a proteyoo do<br />
lar e uma vez mortas essas personagens, os Alb<strong>anos</strong> sentem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
migrar para outras regioes, a fun <strong>de</strong> voltar ao ponto <strong>de</strong> origem. A busca do ponto<br />
original liga-se a figura materna, por isso todo Albano, que sempre vivera em<br />
Sulida<strong>de</strong> e nunca conhecera outras terras, <strong>de</strong>seja voltar ao ponto <strong>de</strong> partida, que,<br />
neste caso, eo Recife.<br />
Afmna Bal (1985, p. 44) que 0 espayo, direta ou indiretamente, esm ligado<br />
a certas relayoes sociais e i<strong>de</strong>o16gicas, as quais passam muitas vezes<br />
<strong>de</strong>spercebidas quando da leitura do texto ficcional. Em Espac;o Terrestre, 0 nivel<br />
espacial po<strong>de</strong> ser analisado com base em algumas implicayoes sociais e<br />
114<br />
i<strong>de</strong>o16gicas, dialogicamente ligadas ao contexto do mundo<br />
empirico. Por<br />
exemplo, certas oposlv:oes espaciais no romance <strong>de</strong> Lemos parecem refletir<br />
imagens estereotipadas que se incorporaram ao inconsciente coletivo. E <strong>de</strong>ssa<br />
forma que a divisao espacial Sulida<strong>de</strong>-Jirau, dialoga com a bipartivao racial entre
ancos e negros no mundo real.<br />
o Jirau, com sua populayao predominantemente negra e mestiya,<br />
correspon<strong>de</strong> a uma especie <strong>de</strong> quilombo. 0 primitivismo acentuado <strong>de</strong>ssa<br />
comunida<strong>de</strong> surge em oposiyao aos habitos dos portugueses <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong>.<br />
As personagens abandonam a metr6pole, pois nao conseguem enten<strong>de</strong>r a<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> diversificada dos habitantes urb<strong>anos</strong>, na medida em que 0 Brasil e<br />
visto pelos portugueses recem-chegados como terra plural, mistura <strong>de</strong> varias<br />
rayas, crenyas diversas e comportamentos<br />
diferentes.<br />
A varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e diversida<strong>de</strong>s sociais no meio urbano gera uma<br />
serie <strong>de</strong> conflitos, os quais provocam a fuga das personagens para Sulida<strong>de</strong>. Na<br />
<strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong>sse novo espayO, as personagens<br />
<strong>de</strong>sconhecem a presenya <strong>de</strong> outra<br />
comunida<strong>de</strong>, 0 povo do Jirau. A partir do inicio da miscigenayao, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da<br />
populayao branca fun<strong>de</strong>-se com a da comunida<strong>de</strong> negra e os conflitos existenciais<br />
comeyam a surgir novamente, como conseqiiencia da interayao entre 0 cronotopo<br />
<strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong> e 0 tempo-espayo do Jirau.<br />
Como vimos, na obra Espa90 Terrestre os cronotopos, inicialmente<br />
opostos na narrativa, confrontam-se, refletem-se e transformam-se, no momenta<br />
em que <strong>de</strong>terminada imagem espayo-temporal acompanha a evoluyao <strong>de</strong> outra.<br />
o cronotopo <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong>, antes oposto ao contexto espayo-temporal da
cida<strong>de</strong>, evolui e interage com 0 progresso urbano. Tambem 0 cronotopo do Jirau<br />
espelha-se nas modific~oes<br />
da vila <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong>. Por meio dos movimentos<br />
migratorios (progressivo e regressivo), as imagens espa~o-temporais confun<strong>de</strong>mse<br />
e sugerem 0 caniter ciclico da cronotopia que ira interferir na propria<br />
capitulo seguinte.<br />
,<br />
CAPITULO 4<br />
A CRONOTOPIA E A ORGANIZA9AO DA NARRATIVA<br />
"0 cronotopo, como materializayao<br />
privilegiada do tempo no espayo, e 0 centro da<br />
concretizayao figurativa, da encarnayao do<br />
romance inteiro".<br />
(Bakhtin, 1993a, p. 356).<br />
universo romanesco, e importante consi<strong>de</strong>rarmos a rela~ao <strong>de</strong> inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ncia<br />
A partir da distin~ao feita inicialmente pelos formalistas russos (jabuZa e
correlayoes entre a hist6ria e sua organizayao atraves do discurso narrativo. 46<br />
Todorov (1966) percebeu que a distinyao hist6ria-discurso<br />
e fundamental<br />
para se estudar os <strong>de</strong>mais componentes da narrativa. Nessa perspectiva, 0 autor<br />
traya urn paralelo entre a sequencia temporal dos acontecimentos no <strong>de</strong>senrolar da<br />
hist6ria, por urn lado, e a apresentayao <strong>de</strong>sses acontecimentos no nivel do<br />
A temporalida<strong>de</strong><br />
e estudada pelo autor como forma <strong>de</strong> par em relevo as<br />
relayoes dial6gicas entre esses dois niveis estruturais da narrativa. Para Todorov<br />
(1966, p. 139), " [...J 0 tempo do discurso e, em certo sentido, urn tempo linear,<br />
enquanto que 0 tempo da hist6ria e pluridimensional". Desse modo, muitos<br />
acontecimentos po<strong>de</strong>m ocorrer quase que simultaneamente no nivel da hist6ria.<br />
46 Segundo os formalistas, a fabula esrn relacionada aos acontecirnentos representados nas suas rela90es<br />
internas, crono16gicas e causais, ao passo que a intriga e a apresenta9ao dos mesmos acontecirnentos,<br />
segundo esquemas <strong>de</strong> constru9ao estetica no texto narrativo. Desse modo, a fabu1a esta para a hist6ria,<br />
assirn como a intriga (sjuzhet) esta para 0 discurso. Essa distin9ao ainda foi retomada por v<strong>anos</strong><br />
autores como Genette (diegese e discurso), Jean Ricardou (fic9aO e narra9ao), Maurice Jean-Lefebve<br />
(narra9ao e diegese) e Clau<strong>de</strong> Bremond (recit raconte e recit racontant).<br />
47 Diversos autores exp1icam 0 sentido duplo que a temporalida<strong>de</strong> apresenta na narrativa ficcional.<br />
Ricoeur (1994, p. 104), par exemplo, afirma que "[...] 0 ato <strong>de</strong> tecer a intriga combina em propor95es<br />
variaveis duas dimensoes temporais, uma cronol6gica, a outra nao-crono16gica. A prirneira constitui a<br />
dirnensao epis6dica da narrativa: caracteriza a hist6ria enquanto constitufda par acontecimentos. A<br />
segunda e a di.mensao configurante propriamente dita, gra9as a qual a intriga transforma os<br />
acontecimentos em hist6ria".
partir da organiza9ao do discurso que or<strong>de</strong>na sequencialmente os<br />
As estrategias utilizadas na composi9ao do discurso romanesco <strong>de</strong>vem ser<br />
discutidas, Ii medida que investigarmos como os indices espaciais e temporais<br />
quanto no plano simb6lico. No entanto, nao preten<strong>de</strong>mos reduzir a analise do<br />
cronotopo a um estudo <strong>de</strong> cunho estruturalista, mesmo porque<br />
se assim<br />
dial6gico da obra litenrria numa perspectiva que ultrapassa os limites do<br />
da cronotopia na constru9ao do universo diegetico, hem como na organiza9ao dos<br />
acontecimentos no discurso. Essa rela9ao e entendida numa perspectiva dial6gica,<br />
assim como 0 dialogo tempo-espa90, ja que urn nivel <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do outro, sendo<br />
praticamente impossivel uma analise dicot6mica <strong>de</strong>ssas categorias que estruturam<br />
"A analise da narrativa <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> [...] da distinyao entre<br />
hist6ria e discurso, e esta distinyao sempre envolve uma relayao <strong>de</strong><br />
48 Labove Waletzky (1976) <strong>de</strong>fmem a narrativa como meio <strong>de</strong> recapitular a experiencia passada,<br />
relacionando a sequencia verbal das frases it sequencia em que os acontecimentos <strong>de</strong> fato ocorreram.<br />
Para os autores, a or<strong>de</strong>m dos elementos da sequencia temporal nao po<strong>de</strong> ser alterada sem mudar a<br />
sequencia <strong>de</strong> eventos inferidos na interpretayao semantica original. Os autores analisam narrativas orais<br />
<strong>de</strong> experiencia pessoal.
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ncia; ou 0 discurso e visto como urna representayao <strong>de</strong><br />
acontecimentos que <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>rados como in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />
<strong>de</strong>ssa representayaO particular, ou senao os chamados<br />
acontecimentos SaDconsi<strong>de</strong>rados como postulados ou produtos <strong>de</strong><br />
urn discurso".<br />
Em Espa90 Terrestre, 0 dialogo entre<br />
hist6ria e discurso e fundamental<br />
para que se entenda 0 cronotopo como responsavel pela organiza9ao da narrativa.<br />
Nesse romance, 0 autor utiliza uma tecnica que revela a falta <strong>de</strong> sincronia entre 0<br />
tempo da hist6ria, caracterizado pela organiza9ao dos fatos no universo da<br />
diegese, eo<br />
tempo do discurso, marcado pela or<strong>de</strong>m em que os acontecimentos<br />
a par <strong>de</strong> acontecimentos<br />
miticos e folcl6ricos. Contudo, no plano do discurso, a<br />
narrativa, que se inicia no presente, e interrompida, para dar lugar it narra900 <strong>de</strong><br />
"Po<strong>de</strong> comeyar sua narrativa pelo fim, pelo meio ou por<br />
qualquer instante dos acontecimentos representados, sem com isso<br />
<strong>de</strong>struir 0 curso objetivo do tempo no acontecimento representado.<br />
Aqui manifesta-se claramente a diferen~a entre 0 tempo que<br />
49 Genette (1979) estuda essa nao correspo<strong>de</strong>ncia entre 0 tempo da hist6ria eo tempodo discurso, isto e,<br />
anacronia. Segundo 0 autor (1979, p.33), "Estudar a or<strong>de</strong>m temporal <strong>de</strong> uma narrativa e confrontar a<br />
or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> disposiyao dos acontecimentos ou segmentos temporais no discurso narrativo com a or<strong>de</strong>m<br />
<strong>de</strong> sucessao <strong>de</strong>sses mesmos acontecimentos ou segmentos temporais na hist6ria [...]".
o tempo que representa funciona, a nosso ver, como 0 tempo do discurso,<br />
pois os acontecimentos<br />
sao narrados sem obediencia a uma or<strong>de</strong>m crono16gica.<br />
Por outro lado, 0 tempo que e representado<br />
e 0 da hist6ria, marcado pelo carater<br />
pluridimensional que abrange v<strong>anos</strong> acontecimentos hist6ricos representados no<br />
tempo e espayo assumem especial relevancia na narrativa.<br />
<strong>de</strong>terminado tempo e espa90, que tiveram seus correspon<strong>de</strong>ntes no mundo<br />
empirico. Logo, a obra reflete uma situa9ao espa90-temporal,<br />
ao mesmo tempo<br />
em que a transforma atraves da representa9ao artistica e ficcional do cronotopo.<br />
A respeito do dialogismo instaurado entre 0 mundo representado e 0 mundo<br />
"A ohra e 0 mundo nela representado penetram no mundo<br />
real enriquecendo-o, e 0 mundo real penetra na obra e no mundo<br />
representado, tanto no processo da sua criayao como no processo<br />
subsequente da vida, numa constante renovayao da obra e numa<br />
percep98.ocriativa dos ouvintes-leitores. Esse processo <strong>de</strong> troca e<br />
sem duvida cronot6pico por si s6: ele se realiza principalmente<br />
num mundo social que se <strong>de</strong>senvolve historicamente, mas tambem<br />
sem se separar do espayOhist6rico em mutayao".<br />
transforma90es hist6ricas e sociais da realida<strong>de</strong>.
Na obra em analise, 0 dialogo presente-passado,<br />
no plano do discurso,<br />
come
hip6tese <strong>de</strong> que os antigos pr6ceres <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong> nao tivessem<br />
restaurado corretamente 0 calendario, visto que, no transcurso da<br />
diaspora, tinham-no negligenciado e, assim, perdido a sequencia<br />
dos dias, meses e ano em que viviam. Dizia 0 avo, que <strong>anos</strong> <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong> estabelecidos em Sulida<strong>de</strong>, os fundadores da vila guiando-se<br />
por calendario improvisado, aparecera um forasteiro que Ihes<br />
dissera: Estamos a 6 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1838. Dai eles constatarem<br />
que fazia exatamente 11 <strong>anos</strong>, 7 meses e 21 dias que haviam<br />
iniciado 0 exodo, pois tinham partido do Recife em 15 <strong>de</strong> maio<br />
<strong>de</strong> 1826.<br />
Contudo, quem podia asseverar que 0 forasteiro os<br />
informara honestamente? Nesse caso, ele, Jose Albano Neto,<br />
po<strong>de</strong>ria estar com 18 ou 20 <strong>anos</strong>, ou menos, ou mais".<br />
(Espa90 Terrestre, p. 10-11) (grifo nosso)<br />
Do presente da narrac;ao, marcado pelo sitio dos Alb<strong>anos</strong> no ano <strong>de</strong> 1949,<br />
ojlashback introduz 0 passado - a chegada do forasteiro a Sulida<strong>de</strong> em 1838-<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da quarta gerac;ao dos Alb<strong>anos</strong>. 50<br />
suspen<strong>de</strong> a narrativa iniciada, volta ao passado atraves <strong>de</strong> uma analepse (ou<br />
50 Estamos consi<strong>de</strong>rando narra9ao na perspectiva <strong>de</strong> Genette. 0 autor (1979, p. 25) tra9a a distin9ao<br />
entre tres niveis fundamentais na organiza9ao do universo ficcional: hist6ria (diegese) - 0 significado<br />
ou conteudo narrativo - narrativa - 0 significante, enunciado, 0 texto narrativo propriamente dito -<br />
e narra9ao - 0 ato narrativo produtor.<br />
51 Gerard Genette (1979) ana1isa alguns mecanismos utilizados pe10 narrador na representa9ao da<br />
temporalida<strong>de</strong> na narrativa. Segundo 0 autor, a pr01epse e urna estrategia que proporciona os avan90s<br />
no tempo da narrativa, ou meThor, alguns acontecimentos po<strong>de</strong>m ser atencipados ao 1eitor no senti do <strong>de</strong><br />
gerar urna expectativa em re1a9ao ao que ainda sera narrado. A ana1epse, ao contrario, e urn retorno aos<br />
acontecimentos passados, estabelecendo, assim, 0 dialogo entre presente e passado. Mieke Bal (1985)<br />
trata <strong>de</strong>sses mecanismos utilizando os termos jlashback, em substituivao a analepse e jlashforward
Albano Neto sente necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> buscar a origem <strong>de</strong> seus antepassados<br />
para compreen<strong>de</strong>r melhor 0 momento presente. Assim, 0 recurso da retrospectiva<br />
temporal (flashback)<br />
e usado para restaurar a mem6ria e a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> das<br />
personagens. Essa estrategia indica a mudan9a <strong>de</strong> urn cronotopo a outro e a<br />
narrativa, que segue ap6s 0 flashback,<br />
po<strong>de</strong> ser interpretada como urn gran<strong>de</strong><br />
so1il6quioformado pelas lembran9as e hist6rias que Jose Albano Neto ouvira <strong>de</strong><br />
seus antepassados. 52<br />
Na tentativa <strong>de</strong> voltar no tempo, Neto evoca as hist6rias que ouvrra a<br />
respeito da vila <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong> e sobre os<br />
antepassados portugueses. Ao lado da<br />
final do relato, a hist6ria <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong> - escrita pelo professor Sarinho - e<br />
no Sitio, como meio <strong>de</strong> resgatar a hist6ria da vila mitica e dos antepassados<br />
como correlato <strong>de</strong> prolepse. Utilizaremos a terminologia <strong>de</strong> Bal daqui por diante, por acreditarmos que<br />
seu enfoque amplia essas estrategias narrativas, na medida em que sao analisadas nao apenas do ponto<br />
<strong>de</strong> vista estrutural (formal), mas tambem, na construyao simb6lica e metaf6rica das obras litenmas.<br />
52 0 solil6quio "[...] consiste na oralizayao do que se passa na consciencia da personagem. [...]
Para revelar as origens dos portugueses e a propria origem do povoado <strong>de</strong><br />
Sulida<strong>de</strong>, 0 narrador onisciente <strong>de</strong>ixa inconc1usa a orac;aoque <strong>de</strong>veria explicar a<br />
"Dai Jose Albano Neto jamais ter dado credito it confusa<br />
forma9ao da estirpe do primeiro Albano, 0 Nuno Varela, as<br />
suposi90es, aos remanejos cometidos com 0 fim <strong>de</strong> torna-Io<br />
mais lendario do que era, mesmo porque ••."<br />
(EspafO Terrestre, p. 16) (grifo nosso).<br />
o enunciado, interrompido na pagina <strong>de</strong>zesseis, so sera retomado na<br />
pagina duzentos e cinquenta e cinco, quase no fmal da historia. Observe-se que<br />
ao atar as duas pontas da narrativa, 0 narrador nao so volta ao lugar em que<br />
interrompera, 0 que, sem duvida, ressalta 0 carater ciclico do discurso narrativo.<br />
Essa estrutura organizacional da narrativa e <strong>de</strong>terminada pelo cronotopo que<br />
"DAi JOSE ALBANO NETO JAMAIS TER DADO<br />
CREDITO a confusa forma~ao da estirpe do primeiro<br />
Albano, 0 Nuno Varela, as suposi~oes, aos remanejos<br />
cometidos com 0 fim <strong>de</strong> torna-Io mais lendario do que era,<br />
mesmo porque em Sulida<strong>de</strong> ja nao havia clima propicio a<br />
sustenta9ao <strong>de</strong> fatos supostamente her6icos, hist6rias fantasticas<br />
pressup6e que 0 figurante, sozinho em face do audit6rio e do leitor como se integralmente<br />
<strong>de</strong>sacompanhado, articule seus pensamentos alto e born som.". (Moises, 1988, p. 146-147).
do passado, en<strong>de</strong>usamento <strong>de</strong> personagens que se per<strong>de</strong>ram na<br />
memoria <strong>de</strong> pessoas que nem mais existiam".<br />
(Espa90 Terrestre, p. 255) (grifo nosso)<br />
narrativa eo carMer ciclico do cronotopo. Essa circularida<strong>de</strong> da cronotopia<br />
po<strong>de</strong><br />
ser observada na mudan9a do plano espa90-temporal (Recife/tempo<br />
hist6rico) a<br />
"Do alto avistavam povoayoes perdidas em meio a brumas<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>solayao [...]. Mais adiante topavam com outra povoayao, nas<br />
mesmas circunstancias, cuja semelhanya com a primeira dava-lhes<br />
a impressao <strong>de</strong> que era a me sma, a me sma que os vinha<br />
acompanhando <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 0 inicio, como se eles viessem marchando<br />
em torno do mesmo ponto. [...]<br />
Cada vez mais se afundavam nos caminhos <strong>de</strong>sconhecidos,<br />
<strong>de</strong>sbravando os san;ais, os tremedais, as penedias. Tinham muitas<br />
vezes <strong>de</strong> se <strong>de</strong>sviar do caminho que vinham fazendo, dada a<br />
impossiblida<strong>de</strong> <strong>de</strong> continua-Io em linha reta.".<br />
(Espa90 Terrestre, p.57-59). (grifo nosso).<br />
Como se observa, na estrada, 0 encontro com as mesmas lillagens<br />
<strong>de</strong>ssem voltas em circulo. E a partir <strong>de</strong>ssa situa9ao que 0 tempo-espa90 come9a a
imagem do caminho das personagens sugere esse movimento "infmitamente<br />
continuo", como se elas se movessem em tomo <strong>de</strong> urn (mico ponto espac;otemporal.<br />
Como ja referimos, a narrativa, a partir da estrutura circular, representa<br />
simbolicamente essa circularida<strong>de</strong> na construc;ooda imagem cronot6pica, pois as<br />
imagens espaciais e temporais tocam-se num mesmo ponto. Isso nos permite<br />
afumar que a cronotopia organiza a narrativa, urna vez que a narrac;oo,iniciada<br />
o sentido circular da narrativa e da cronotopia liga-se a importfu1ciada<br />
. 53<br />
postenores.<br />
"0 homem como especie se torna imortal, pois sempre<br />
haveni sucessores. Sucessores que sempre procurarao resgatar os<br />
antecessores da morte e do esquecimento, isto e, que procurarao<br />
53 Estamos consi<strong>de</strong>rando 0 termo "imortalida<strong>de</strong>" no plano metaf6rico. A sucessao <strong>de</strong> vanas gera
impor a permanencia, a imortalida<strong>de</strong> sobre a transitorieda<strong>de</strong> e a<br />
mortalida<strong>de</strong> dos individuos".<br />
Todos Alb<strong>anos</strong> estao unidos pelo espa90, uma vez que Viveram em<br />
Sulida<strong>de</strong>, mais precisamente, no mesmo sitio. No entanto, 0 tempo separa as<br />
geravoes com a morte <strong>de</strong> uns e 0 nascimento <strong>de</strong> outros. Mesmo assim, 0 tempo<br />
das recorda90es e lembran9as consegue unir os Alb<strong>anos</strong>, pois cada urn sempre<br />
Em Espac;o Terrestre,<br />
a imagem do imbuzeiro, simbolo <strong>de</strong> resistencia e<br />
"0 imbuzeiro era uma arvore eterna, sempre ver<strong>de</strong>, nao<br />
havia verao que lhe causticasse as folhas. De suas raizes brotavam<br />
naturais bolsoes <strong>de</strong> agua, as chamadas, batatas <strong>de</strong> imbu, das quais<br />
se autonutria. Jose Albano <strong>de</strong>stinara-se a eterrnzar-se ao<br />
<strong>de</strong>scampado, eternizar-se-ia, pois, sob 0 imbuzeiro, haveria pouca<br />
diferen
E a partir da imagem circular da saga dos Alb<strong>anos</strong> que 0 discurso narrativo<br />
resgata 0 passado das origens do primeiro ancestral - Albano Nuno Varela.<br />
Assim, do ano <strong>de</strong> 1949, passa-se a uma data nao precis a, provavelmente 0 ano <strong>de</strong><br />
mudanc;a espac;o-temporal <strong>de</strong>ixa a narrativa em aberto gerando forte expectativa<br />
acontecimentos revividos por outras personagens, como Albano Nuno Varela.<br />
cronotopo, marc ado pela cida<strong>de</strong> do Recife e pelo tempo hist6rico. Vejamos 0<br />
flashback<br />
mudanc;a <strong>de</strong> plano espac;o-temporal
A origem <strong>de</strong> Albano NUllO Varela e recuperada<br />
por meio <strong>de</strong> narrativas<br />
baseadas na tradit;ao oral, nas quais a personagem se transforma numa figura<br />
lendaria, por conta das "f...j hist6rias nao documentadas, nao contadas em livros,<br />
sujeitas portanto a interpretat;oes pessoais, diminuit;oes ou acrescimos pr6prios <strong>de</strong><br />
narrativas que por muito repetidas vao-se <strong>de</strong>turpando naturalmente".(Espa90<br />
in<strong>de</strong>fmit;ao quanto a not;ao <strong>de</strong> tempo-espat;o sobre a hist6ria do primeiro Albano<br />
toma-se relevante no sentido <strong>de</strong> transformar a personagem numa figura lendaria:<br />
ItDes<strong>de</strong> crian.;a Jose Albano Neto ouvia falar do<br />
primeiro Albano que aportara ao Brasil por volta <strong>de</strong> 1810, 12,<br />
20, por ai, vagamente, ninguem sabia ao certo, como ao certo<br />
nao se sabia <strong>de</strong> que regiao <strong>de</strong> Portugal ele viera. De Portugal,<br />
da Galiza, da Espanha. Ou nao viera <strong>de</strong> parte alguma, aqui<br />
nascera e se criara, remanescente dos holan<strong>de</strong>ses que no seculo<br />
XVII dominaram por mais <strong>de</strong> vinte <strong>anos</strong> a regiao pemambucana".<br />
(Espa90 Terrestre, p. 14) (grifo nosso).<br />
Como se po<strong>de</strong> notar, nenhuma personagem conhece a proce<strong>de</strong>ncia <strong>de</strong> NUllO<br />
movimentos migrat6rios<br />
<strong>de</strong> urn cronotopo a outro, pois as personagens tentarao
esgatar suas origens num tempo-espa~o que tome isso possivel.<br />
No espa~o urbano da metr6pole, em alguns momentos, 0 passado <strong>de</strong><br />
Albano Nuno Varela, em Portugal, e evocado. Dentro do longo flashback<br />
que<br />
Varela diante <strong>de</strong> urn novo cronotopo (Recife/tempo hist6rico), completamente<br />
diferente daquele <strong>de</strong> sua terra natal. Vejamos no trecho abaixo como 0 passado e<br />
atualizado, por meio das evoca~5es <strong>de</strong> Nuno Varela:<br />
"E, numa sobrecarga <strong>de</strong> af1i~ao, as canoas que vogavam<br />
como saltando, sob 0 dominio dos negros escravos que<br />
<strong>de</strong>mandavam a Olinda, don<strong>de</strong> voltavam com 0 carregamento <strong>de</strong><br />
agua potavel que haveria <strong>de</strong> matar a se<strong>de</strong> dos senhores.<br />
E minha se<strong>de</strong> quem mata?, perguntava-se, e compreendia<br />
que ja nao tinha ele proprio aon<strong>de</strong> voltar. Chegavam-Ihe<br />
recorda~5es da terra, assim como retalhos pouco distintos <strong>de</strong><br />
sonhos, fulgores logo ofuseados por opacida<strong>de</strong> sombria.<br />
Assaltavam-Ihes imagens incoerentes, trazidas it lembran~a sem<br />
aparente motivo. Os tamancos do pai a secar diante do rogao, 0<br />
xailinho da mae esquecido no espaldar da ca<strong>de</strong>ira, os suspiros, 0<br />
cansa~o <strong>de</strong> ambos ou seus silencios transitados, ela mexendo<br />
uma panela na cozinha, ele batendo um prego na pare<strong>de</strong>[ ...]."<br />
(Espar;o Terrestre, p.36) (grifo nosso).<br />
Observe-se que, nao obstante a cita~ao acirna apresentar rnarcas
lingtiisticas do tempo preterito imperfeito, 0 passado <strong>de</strong> NUllO Varela e atualizado<br />
a partir <strong>de</strong> uma serie <strong>de</strong> epis6dios evocados pela personagem -<br />
as tamancos do<br />
pai a secar diante do fogao,<br />
0 xailinho da mae esquecido no espaldar da ca<strong>de</strong>ira<br />
- na situa9ao presente do Recife. Desse modo, 0 passado da personagem, em<br />
Portugal, e atualizado como se NUllO<br />
Varela estivesse revivendo aqueles<br />
acontecimentos no momento presente. A respeito do tempo verbal do imperfeito<br />
que introduz a90es passadas no momento presente, observa Pouillon (1974,<br />
T..} pOI que motivo escrever no imperfeito para<br />
reproduzir urna ayao plenamente presente? 0 motivo apontado <strong>de</strong><br />
passagem e que, usando <strong>de</strong>ste recurso, torna-se possivel apresentar<br />
a ayao como urn espetaculo. E este, com efeito, 0 verda<strong>de</strong>iro<br />
sentido romanesco do imperfeito: nao se trata <strong>de</strong> urn sentido<br />
temporal mas, por assim dizer, <strong>de</strong> um sentido espacial; ele nos<br />
distancia do que estamos olhando".<br />
cronot6pico (Recife/presente) a outro (Portugal/passado). 0 discurso indireto-
vozes do narrador e da personagem se superpoem, mas nao se confun<strong>de</strong>m. As<br />
imagens do passado confun<strong>de</strong>m-se na dualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vozes entre 0 ponto <strong>de</strong> vista<br />
do narrador e 0 da personagem. Como afmna Maingueneau (1996 b, p. 118), ao<br />
dualida<strong>de</strong> pela discordancia que percebe entre as duas vozes, discordancia que 0<br />
o espayo da cida<strong>de</strong> e 0 tempo hist6rico revestem-se <strong>de</strong> sentido na medida<br />
passagem <strong>de</strong> uma situayao cronot6pica (Recife/presente) a outra<br />
(Portugal/passado).<br />
momentos, quando Albano Nuno Varela, nao conseguindo se adaptar a situayao<br />
da metr6pole continua recordando-se da terra natal. Porem, diante da<br />
"Em seus aposentos, sentado na cama enquanto os <strong>de</strong>mais<br />
caixeiros, ja retomados, dormiam; ouvindo-lhes os ressonos, os<br />
roncos furibundos, Albano lembrou que aquela hora, em sua<br />
al<strong>de</strong>ia... Como estaria sua al<strong>de</strong>ia aquela hora? Sem os pais, que nao<br />
mais existiam, como estaria? Esfregou 0 rosto com as maos,<br />
apertou os olhos, espremendo-os <strong>de</strong> todas as suas visoes. E<br />
naquela ocasiiio <strong>de</strong>terminou esquecer para sempre a sua<br />
al<strong>de</strong>ia".<br />
(Espa90 Terrestre, p.55). (grifo nosso)
133<br />
Nesse exemplo, a casa, mais precisamente<br />
0 espayo restrito do quarto<br />
provoca urn estado <strong>de</strong> <strong>de</strong>vaneio em Albano Varela que se recorda da terra natal.<br />
o espayo interior do quarto proporciona a revelayao da interiorida<strong>de</strong> da<br />
personagem, na medida em que se conhecem os pensamentos e afliyoes <strong>de</strong><br />
Albano.<br />
Segundo Bachelard (1988, p. 26), 0 espayO da casa constitui-se num dos<br />
pontos <strong>de</strong> maiores foryas <strong>de</strong> integrayao entre 0 homem e seus sonhos,<br />
recordayoes e lembranyas. E continua 0 autor: "0 passado, 0 presente e 0 futuro<br />
dao a casa dinamismos diferentes, dinamismos que nao raro interferem, as<br />
vezes se opondo, as vezes excitando-se mutuamente". Nessa perspectiva, a casa<br />
<strong>de</strong> Varela no Recife representa 0 presente ao mesmo tempo em que evoca urn<br />
passado -<br />
a al<strong>de</strong>ia em Portugal, quando a personagem <strong>de</strong>termina esquecer para<br />
sempre a al<strong>de</strong>ia e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> acreditar no futuro, partindo com Ramires a procura <strong>de</strong><br />
outro tempo-espayo.<br />
Conforme Bal (1988, p. 41), 0 fato <strong>de</strong> 0 narrador utilizar estrategias como<br />
oflashback ou 0flashforward nao e apenas uma convenyao liteniria, visto que os<br />
recuos e avanyos no tempo <strong>de</strong>ntro do universo ficcional adquirem uma<br />
representativida<strong>de</strong><br />
significativa e sirnb6lica no romance.<br />
Na obra Espa90 Terrestre, como virnos, 0 flashback<br />
estabelece 0 dialogo
134<br />
entre presente-passado, enfatizando uma situa9ao hist6rico-social <strong>de</strong>terminante na<br />
vida das personagens. 0 longo flashback<br />
que indica a mudan9a <strong>de</strong> urn plano<br />
espa90-temporal - ano <strong>de</strong> 1949 e sitio dos Alb<strong>anos</strong> - a outro -<br />
aproximadamente 1812 e espa90 do Recife -<br />
tern urna fun9ao simb6lica na<br />
organiza9ao da narrativa. Voltar ao passado representa 0 retorno as origens no<br />
sentido <strong>de</strong> se contextualizar 0 presente. Assim, passado e presente fun<strong>de</strong>m-se<br />
nurna s6 imagem, a imagem dos Alb<strong>anos</strong> como imortais, apesar do po<strong>de</strong>r<br />
inexonivel do tempo. A "imortalida<strong>de</strong> simb6lica" revela-se nas sucessoes das<br />
varias gera90es que viveram no mesmo plano espacial (Sulida<strong>de</strong>), mas em epocas<br />
diferentes.<br />
Espar;o Terrestre e construido, assim, a partir do dialogo presente-passado,<br />
por meio <strong>de</strong> uma inversao hist6rica, como diria Bakhtin (1993a, p. 264), na<br />
medida em que "[...J se representa como ja tendo sido no passado aquilo que na<br />
realida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ra ou <strong>de</strong>vera se realizar somente no futuro, aquilo que, em<br />
substancia, apresenta-se como urn objeto, urn imperativo, mas <strong>de</strong> modo algum<br />
como uma realida<strong>de</strong> do passado".<br />
No romance, a representa9ao do passado do primeiro Albano remete-nos a<br />
uma inversao hist6rica, pois a hist6ria <strong>de</strong> NUllOVarela explica as atitu<strong>de</strong>s do<br />
ultimo Albano - Jose Albano Neto - fechando 0 ciclo das gera90es e 0 circulo
135<br />
da narrativa. Assim, 0 passado <strong>de</strong> uma personagem e trazido it cena para<br />
contextualizar 0 momenta presente da narraf;ao em que Albano Neto vive a<br />
duvida sobre sua verda<strong>de</strong>ira ida<strong>de</strong>.<br />
No plano da narraf;ao, quando 0 ultimo Albano esUtno sitio, 0 circulo da<br />
narrativa se fecha a partir das pr6prias paIavras do narrador que retomam 0<br />
enunciado interrompido na pagina <strong>de</strong>zesseis, como ja vimos. Se 0 discurso<br />
narrativo fecha-se <strong>de</strong> forma circular, a hist6ria parece abrir-se em diref;ao ao<br />
futuro <strong>de</strong> Jose Albano Neto com a saida da personagem <strong>de</strong> Sulida<strong>de</strong>,<br />
concretizando 0 sonho <strong>de</strong> seus ancestrais que sempre <strong>de</strong>sejaram conhecer 0<br />
"lendario Brasil".
CONCLUSAO<br />
'Toda fantasia, toda inven
<strong>de</strong>sta, po<strong>de</strong>mos tirar urna conclusao <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m geraI: a analise <strong>de</strong> uma obra<br />
litenrria, visando ao estudo mais amplo das re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> significa9ao, <strong>de</strong>ve pautar-se<br />
pela natureza dial6gica e cronot6pica da linguagem, urna vez que a linguagem,<br />
artisticamente representada no texto ficcional, reveIa-se urn meio eficaz <strong>de</strong><br />
mostrar as contradi90es hist6ricas e sociais do mundo empirico.<br />
Parece-nos ter ficado claro que a n09ao do cronotopo po<strong>de</strong> abrir caminhos<br />
a critica litenrria, na medida em que possibilita a analise do texto enquanto<br />
manifesta9ao <strong>de</strong> linguagem, dialogicamente relacionado ao contexto espa90-<br />
temporal do mundo empirico.<br />
A associa9ao das n090es <strong>de</strong> cronotopia, dialogismo e plurilingiiismo,<br />
mostrou-se <strong>de</strong> fundamental relevancia para se compreen<strong>de</strong>r a rela9ao tempoespa90<br />
como principio organizador do universo romanesco, tanto no nivel formal,<br />
quanta no metaf6rico.<br />
o estudo sobre 0 cronotopo da estrada evi<strong>de</strong>nciou 0 dialogo entre os<br />
indices espaciais e temporais, importantes na organiza9ao da heterogeneida<strong>de</strong><br />
discursiva do romance. 0 encontro <strong>de</strong> personagens <strong>de</strong> diferentes cronotopos<br />
provoca a intera9ao entre varias linguagens que se hlltercruzamno mesmo plano<br />
espa90-temporal. Sob esse aspecto, a cronotopia esta estreitamente interligada ao<br />
plurilinguismo, este introduzido no romance por meio da representa9ao <strong>de</strong> varios<br />
137
dialetos que se interpenetram na forma
As rela90es dial6gicas entre os cronotopos sao capitais para a elucida9ao <strong>de</strong><br />
como urn plano espa90-temporal interage com imagens <strong>de</strong> outros cronotopos.<br />
Assim, cronotopos, a principio antiteticos, como Recife e Sulida<strong>de</strong>, dialogam<br />
entre si, intercruzam-se e se completam no fmal da hist6ria, quando Sulida<strong>de</strong><br />
come9a a acompanhar as transforma90es e evolu9ao do espa90 urbano.<br />
A cronotopia organiza a narrativa <strong>de</strong> forma circular pela evoca9ao e<br />
atualiza9ao <strong>de</strong> urn cronotopo do passado no plano da narra900, esse efeito e<br />
produzido pelo uso <strong>de</strong> flashbacks e flash-forwards que sugerem urna<br />
circularida<strong>de</strong>, tanto do discurso, quanta da hist6ria.<br />
Parece-nos ter ficado claro que, no romance Espa90 Terrestre, 0 estudo do<br />
ternpo-espa90, nao como categorias isoladas que situam acontecimentos e<br />
personagens, mas como urn elemento comp6sito - a cronotopia - principio<br />
organizador da narrativa, contribui <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>cisiva para a organiza9ao da<br />
arquitetura do universo ficcional.<br />
Certamente nao esgotamos as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> interpreta9ao da cronotopia<br />
no romance Espa90 Terrestre, pois a obra literaria estara sernpre aberta a varias<br />
leituras, urna vez que nao seapresenta como urn dado pronto e acabado, mas que<br />
se recria a cada leitura.<br />
Diante das possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> aplica9ao que 0 enfoque bakhtiniano sugere<br />
139
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Janeiro, n.62, 1980. p.89-97.<br />
100. SCHUEREWEGEN, Franc. Teledialogisme: Bakhtin contre Jakobson.<br />
Poetique, Seuil, n.8!. p. 105-114,1990.<br />
101. SCHULER, Donaldo. Teoria do romance. Sao Paulo: Atica, 1989. 88 p.<br />
102. SEGRE, Cesare. As estruturas e 0 tempo. Sao Paulo: Perspectiva,1986.<br />
103. SOUZA, Solange Jobim e. Infancia e Iinguagem: Bakhtin, Vygotsky e<br />
Benjamin. Campinas: Papirus, 1995. p. 97-121 : Bakhtin: a dimensao<br />
i<strong>de</strong>o16gica e dia16gica da linguagem.<br />
104. STAM, Robert. Bakhtin: da teoria liteniria a cultura <strong>de</strong> massa. Sao Paulo:<br />
Atica, 1992. 104 p.<br />
105. TITUNIK, 1. R .. M. M. Baxtin (the Baxtin school) and soviet semiotics.<br />
Dispositio. Michigan, v. 1, n. 3, p. 327-338, 1976.<br />
106. TODOROV, Tzvetan. Generos do discurso. Martins Fontes: Sao Paulo,<br />
1980. 287p.<br />
107. . Mikhail Bakhtine : Ie principe dialogique. Paris : Seuil,<br />
1981. 316p.<br />
108. . Les categories du recit litteraire. Communications. Paris:<br />
Seuil, n.8, p. 125-51, 1966.
109. TOMUS, Mircea Mihai. The sense of time in old english and old french<br />
poetry. Dissertation Abstracts International: the humanities and<br />
social sciences. v. 55, n.8, 1995.<br />
110. TOOLAN, Michael 1. Narrative: a critical linguist introduction. London:<br />
Rouledge, 1988. p.146-182: Narrative as socially situated: the<br />
sociolinguistic approach.<br />
111. VILA NOVA, Sebastiao. Aventura <strong>de</strong> uma estreia. Diario <strong>de</strong> Pernambuco.<br />
Recife, 19 abr. 1997, Viver, p. D-5.<br />
112. ZIMA, Pierre V. 1981. L' ambivalence dialectique: entre Benjamin et<br />
Bakhtin. Revue d'Esthetique, n. 1, p.131-140, 1981.
o indice remissivo contem:<br />
• nomes <strong>de</strong> autores citados,<br />
• principais conceitos <strong>de</strong>senvolvidos ou citados,<br />
• titulos <strong>de</strong> algumas obras e ensaios <strong>de</strong> Bakhtin.<br />
A Cultura Popular na Ida<strong>de</strong> Media e no<br />
Renascimento:, 21<br />
A poetica <strong>de</strong> Dostoievski, 18; 20; 43<br />
aferese,63<br />
Aguiar e Silva, 9; 71<br />
Alencar, 71<br />
Almeida,l1<br />
analepse, 122<br />
Authier-Revuz,35<br />
B<br />
Bachelard,133<br />
Bakhtin, 9; 10; 12; 15; 16; 17; 18; 19; 20;<br />
21; 22; 23; 24; 26; 27; 28; 29; 31; 32; 33;<br />
34; 35; 36; 37; 38; 39; 40; 41; 43; 44; 47;<br />
49; 51; 53; 54; 60; 63; 65; 68; 73; 93; 97;<br />
99; 116; 119; 120; 134; 136<br />
Bal, 79; 81; 122; 133<br />
Barros,25<br />
Best, 13; 44<br />
bivocalida<strong>de</strong>,35<br />
Boldori,48<br />
Brait, 25<br />
Bremond, 117<br />
C<br />
carnaval,21<br />
carnavalizar;ao,21; 49<br />
Costa Milton, 73<br />
cronotopo, 9; 13; 14; 21; 22; 24; 27; 34;<br />
35; 39; 41; 43; 44; 46; 47; 48; 49; 50; 59;<br />
61; 65; 66; 82; 83; 93; 96; 100; 102; 119;<br />
120; 123; 124; 125; 128; 129; 1<strong>30</strong>; 137;<br />
138; 139<br />
cronotopo da estrada, 13; 52; 59; 65; 125;<br />
137; 138<br />
Culler, 118<br />
D<br />
diacronia,61<br />
dialogicida<strong>de</strong> interna, 22; 27; <strong>30</strong>; 34; 64;<br />
101<br />
dialogismo, 12; 16; 17; 19; 21; 24; 25; 27;<br />
28; 29; <strong>30</strong>; 31; 32; 33; 34; 36; 38; 43; 64;<br />
70; 96; 102; 120; 137
discurso <strong>de</strong> outrem, 36<br />
discurso polijOnico, 19<br />
Dubois, 63<br />
E<br />
elipse, 79<br />
entropia, 44<br />
Estetica da Criar;iio Verbal, 18<br />
estilizar;iio, 16<br />
estratijicar;iio lingiifstica, 12; 34; 35<br />
exotopia, 19; 25<br />
F<br />
Fiorin,28<br />
flashback, 122; 123; 128; 1<strong>30</strong>; 133; 134<br />
flashforward, 122<br />
Flaubert, 47<br />
Formalismo Russo, 16; 20<br />
Formas <strong>de</strong> Tempo e <strong>de</strong> Cronotopo no<br />
Romance, 21; 40<br />
G<br />
generos do discurso, 36<br />
generos intercalados, 36<br />
generos literarios, 37<br />
generos primarios, 37<br />
generos secundarios, 37<br />
Genette, 117; 122<br />
Goldman, 18; 23<br />
H<br />
heterogeneida<strong>de</strong> constitutiva, 38<br />
heterogeneida<strong>de</strong> discursiva, 37; 38<br />
heterogeneida<strong>de</strong> mostrada, 38<br />
Holquist, 42<br />
homofonia, 32<br />
homologia, 23<br />
I<br />
interar;iio verbal, 15; 20; 25; 26; 29; <strong>30</strong>;<br />
35<br />
intertextualida<strong>de</strong>, 25; 28; <strong>30</strong>; 31- 70- 71-<br />
139 ' , ,<br />
intertextualida<strong>de</strong> endoliteraria, 71<br />
intertextualida<strong>de</strong> exoliterarla, 71<br />
J<br />
Jean-Lefebve, 117<br />
Jha Prabhakara, 39<br />
K<br />
Kinser, 17<br />
Kothe, 20; 29; 32; 33<br />
Kristeva, 28; 31; 33; 72<br />
L<br />
Labov,118<br />
Le freudisme" 19<br />
lei do posicionamento, 42<br />
Lemos, 11<br />
Leontieva,49<br />
Lukacs, 18; 23<br />
M<br />
Machado, 42; 43<br />
Maingueneau, 61; 68; 132<br />
Manet,47<br />
Marxismo efilosofia da linguagem" 19<br />
Medve<strong>de</strong>v,20<br />
Mitterand, 13; 17; 44<br />
monologismo, 32<br />
mon6logo interior, 33<br />
mon6logo interior dialogado, 33<br />
N
Nieves, 49<br />
Nunes, 117<br />
o<br />
o Discurso no Romance, 20,22<br />
o metoda formal em estudos literarios,<br />
19,20<br />
o romance <strong>de</strong> educa~iio e seu significado<br />
na historia do realismo, 22<br />
objetivismo abstrato, 19<br />
p<br />
parodia,16<br />
Perrone-Moises,31<br />
plurilingUismo, 12; 21; 22; 24; 27; 34; 35;<br />
36; 37; 60; 64; 70<br />
plurilingiiismo interno, 61<br />
polifonia, 17; 28; 35; 36; 49<br />
Pouillon, 56<br />
R<br />
Reis, 125; 126<br />
Ricardou, 117<br />
Ricoeur,45<br />
romance <strong>de</strong> cavalaria, 38<br />
romance <strong>de</strong>forma~iio, 38<br />
S<br />
Santos, 70<br />
Schnai<strong>de</strong>rman, 24; 32<br />
slncope,63<br />
sincronia, 61<br />
Stam, 15; 20<br />
subjetivismo i<strong>de</strong>alista, 19<br />
T<br />
tempo ciclico, 13; 53; 57; 65; 95; 96; 97;<br />
98; 99; 100; 102; 103; 121; 125; 138<br />
tempo hist6rico, 13; 53; 57; 60; 66; 95;<br />
97; 98; 100; 102; 121; 125; 128; 1<strong>30</strong>; 132;<br />
138<br />
Tezza,25<br />
Tinianov, 16<br />
Todorov, 18; 20; 23; 26; 38; 117<br />
Tollenare, 71<br />
translingiilstica, 20; 21; 29<br />
V<br />
Voloshinov, 19<br />
W<br />
Waletzky, 118<br />
y