Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...
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Juca e sua fama <strong>de</strong> doido<br />
O t<strong>em</strong>a da loucura freqüenta a obra <strong>de</strong> <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> <strong>em</strong> vários<br />
momentos, como é o caso <strong>de</strong> algumas passagens dos Contos Novos. 209 Em “Vestida<br />
<strong>de</strong> preto”, ao referir-se às bombas que tomava no colégio, o narrador, que escreve na<br />
primeira pessoa, conta como era consi<strong>de</strong>rado na família “um caso perdido”, “a tara da<br />
família”. 210 Chega a indulgir consigo próprio na sua “imperfeição <strong>de</strong> caso perdido”,<br />
nesta passag<strong>em</strong>: “O certo é que, <strong>de</strong>cidido <strong>em</strong> minha <strong>de</strong>sesperada revolta contra o<br />
mundo que me ro<strong>de</strong>ava, sentindo um orgulho <strong>de</strong> mim que jamais buscava esclarecer,<br />
tão absurdo o pressentia, o certo é que eu já principiava me aceitando por um caso<br />
perdido, que não adiantava melhorar” 211 . No <strong>de</strong>senrolar do conto, o narradorpersonag<strong>em</strong><br />
relata que mesmo tendo nascido <strong>em</strong> si uma “vonta<strong>de</strong> irritada <strong>de</strong> saber”,<br />
tornando-se estudiosíssimo, não abandona o seu jeito <strong>de</strong> perdido, mas cultiva-o.<br />
Maria, um dos seus quatro amores eternos, também é tachada <strong>de</strong> doida, pois namorava<br />
com Deus e todo o mundo. Em “Fre<strong>de</strong>rico Paciência”, a qualificação “caso perdido”<br />
ressurge, associada, também, ao jeito “estourado” <strong>de</strong> Juca.<br />
No conto O peru <strong>de</strong> natal, o narrador fala sobre sua fama <strong>de</strong> doido na família e<br />
seus atos <strong>de</strong> loucura, com os quais os familiares já estariam acostumados. Quanto a<br />
isto, afirma: “Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me<br />
apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integrida<strong>de</strong>. E me <strong>de</strong>ixaram fazer<br />
tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência s<strong>em</strong> complexos, <strong>de</strong><br />
209 <strong>Mário</strong> consi<strong>de</strong>ra estes contos um tanto quanto autobiográficos, e se multiplica <strong>em</strong> diversas máscaras:<br />
narradores, personagens, vozes na primeira e na terceira pessoa. Máscaras que acreditamos não<br />
encobrir nenhuma substância, nenhuma verda<strong>de</strong> final. Nos manuscritos <strong>de</strong> “O poço”, on<strong>de</strong> havia escrito<br />
“<strong>Mário</strong>, você ont<strong>em</strong> fez uma coisa”, anota entre parênteses: “seria bom me dar um outro nome nestes<br />
contos tão fantasiosos: não é justo que eles, se bastante autobiográficos, pareçam autênticos por<br />
indicações <strong>de</strong>finitivamente autênticas”. O autor borra seu nome próprio, escrevendo por cima o nome<br />
do personag<strong>em</strong> Juca (segundo informações colhidas nos arquivos do IEB por Ivone Daré Rabello,<br />
conforme o livro A caminho do encontro – Uma leitura <strong>de</strong> “Contos Novos”, p. 79).<br />
210 A concepção <strong>de</strong> loucura como tara apoiava-se nas teorias da hereditarieda<strong>de</strong>-<strong>de</strong>generescência,<br />
ass<strong>em</strong>elhando o gênio ao crime. Na década <strong>de</strong> 20, estas idéias perd<strong>em</strong> a sua força e são questionadas<br />
pela psiquiatria dinâmica. (Cf. E. Roudinesco, História da Psicanálise na França, vol. 2). <strong>Mário</strong> <strong>de</strong><br />
Andra<strong>de</strong> incorpora o vocábulo como inscrito no discurso familiar. A visão da família ficcionalizada<br />
pelo escritor v<strong>em</strong> <strong>de</strong>ste modo confirmar a tese da doutrina da <strong>de</strong>generescência acerca do artista, vale<br />
dizer, o artista seria um caso patológico, e a sua obra uma patologia. O <strong>de</strong>stino do artista como um<br />
louco estava então traçado para o menino Juca.<br />
211 M. <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, “Vestida <strong>de</strong> preto”, Contos novos, p.12.<br />
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