Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...
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ausente. Relacionando o estudo do tema do seqüestro na poesia “popular” com seu estudo na poesia “culta”, assinala Telê A. Lopez que, para Mário de Andrade, o seqüestro da dona ausente “consolida o mesmo escudo impalpável do amor e medo que analisa nos poetas românticos, moldado por interdições e obstáculos interiores que exprimem a dissociação sexo e sentimento amoroso” 174 . A veneração à figura materna se repete e se desdobra em variadas formas, como na dedicatória que o poeta faz à mãe na Lira dos vinte anos, onde lê, Mário, o desejo do poeta de retorno ao seio materno 175 . O ápice desse amor – “o seu delírio, a sua maior elevação consciente, o seu maior gozo inconsciente” – é a experiência relatada como “o importante caso da cama”. A mãe do poeta conta-lhe que tivera um pesadelo com ele: via o filho morrer na própria cama. Menos de três meses depois, Álvares de Azevedo adoece e a mãe, esquecida do que sonhara, oferece ao filho seu leito. Este inicialmente recusa, mas dias depois é ele quem pede à mãe que se deite em sua cama, onde vem a morrer. Mário de Andrade, negando-se a aceitar o caso relatado como uma simples questão de “sentimentalismo romântico”, pois pensava ser o amor pela mãe, em Álvares de Azevedo, “excessivo e obcecante”, convoca as noções contemporâneas da psicologia: “Complexo de Édipo, dirão os psicanalistas... Mas a mãe de Álvares de Azevedo entrou também no jogo muito... Talvez menos inocentemente do que era lícito esperar daquele tempo discreto” 176 . Mas, além do amor à mãe e às irmãs, os nossos jovens poetas românticos, conforme o ensaio de Mário de Andrade, transformavam a mulher, em seus versos, em anjo, virgem, criança, santa, denominações que como diz o autor “a excluem (a mulher) de sua plenitude feminina”. Esse “respeito à mulher” seria uma das facetas do medo do amor nos românticos, pois como relata Álvares de Azevedo numa carta ao amigo Luís Antonio da Silva Nunes em 1848, “às santas adora-se, mas não se ama”. O tema do “amar sem ser amado” é uma outra forma de manifestação do amor e do medo na poesia, através de que os rapazes “se afastam da experiência do amor, criando o amor irrealizável por ingratidão, não correspondência, infidelidade, e outras 173 M. de Andrade, “Amor e medo”, Aspectos da literatura brasileira, p. 210. 174 T. A. Lopez, Ed. genética e crítica de Balança, Trombeta e Battleship, p. 61. 175 Para Freud o protótipo de toda relação amorosa seria uma criança segurando o peito de sua mãe, de modo que o amor seria a repetição desta satisfação primária. Miller assinala que o amor no sentido de Freud incluiria o gozo, diferentemente de Lacan que separa os campos do amor e do gozo (Logicas de la vida amorosa, p. 23). 176 M. de Andrade, op. cit., pp. 219-220. 79
escapatórias assim” 177 . Mário afirma, por exemplo, que em Gonçalves Dias há uma fuga sintomática da realização do amor, chegando este, em sua poesia, a preferir morrer de amor do que encontrar sua realização, quando a amada lhe corresponde. Como referimos no início deste tópico, a prostituta aparece em contraposição à mulher idealizada, sobrestimada dos românticos. Nesse sentido, Freud, na “Psicologia da vida amorosa”, usa o termo alemão Dirne, para dirigir-se justamente à mulher de má reputação, à prostituta. A Dirne seria uma repetição deslocada da mãe, na medida em que, do ponto de vista do filho, a mãe é infiel por se relacionar com o pai. Para Freud, a mulher, para ser desejada, reconhecida como mulher, necessita ser vista como a mulher do Outro. Porém, o mais interessante é que o próprio termo Dirne utilizado desde o século XVI, significando “prostituta”, “mulher pública”, no velho alemão (Hochdeutsch), vem da palavra Thiorna, que significava virgem. Então, Dirne é uma palavra antitética, como Heimlich 178 . Em termos de valores morais Fräulein, senhorita, se opõe a Dirne. Mas a personagem de Amar, verbo intransitivo, Fräulein, a professora, ainda que se sentisse ofendida pela explicação do Sr. Sousa Costa à sua esposa, de que estaria ali para satisfazer as primeiras “fomes amorosas” do rapaz, é também a Dirne, a mulher da vida, aquela que iniciaria Carlos no amor sexual. A questão da idealização da mulher e a impossibilidade da realização amorosa, nos poetas românticos, nos remete à poética do amor cortês surgida no sul e norte da França, estendendo-se até à Alemanha, abarcando os séculos XI, XII e início do século XIII. Na retórica do amor cortês, os trovadores exaltavam o amor à margem do casamento, pois o casamento significa apenas a união dos corpos, enquanto o ‘Amor’, o Eros supremo, é a projeção da alma para a união luminosa, para além de todo amor possível nesta vida. Eis porque o amor pressupõe a castidade (...) O amor pressupõe também um ritual: o domnei ou donnoi, vassalagem amorosa. O poeta conquistou sua dama pela beleza de sua homenagem musical. De joelhos, jura eterna fidelidade, tal como se faz a um suserano. Como garantia de amor, a dama oferecia ao seu paladino-poeta um anel de ouro, ordenava-lhe que se levantasse e beijava-lhe a fronte. Doravante, esses amantes estarão unidos pelas leis da cortesia: o segredo, a paciência, a 177 Idem, p. 208. 178 O adjetivo heimlich pode apresentar os sentidos: “a) familiar, conhecido; b) secreto, oculto; c) inquietante, estranho”. De acordo com Hanns, “o ponto de ‘torção’ em que heimlich passa de ‘familiar e conhecido’ para ‘inquietante e estranho’ ocorre no sentido b: aquilo que é ‘secreto e oculto’ pode ser ‘familiar, íntimo e recôndito’ para aquele que participa do segredo (pois acontece entre quatro paredes, no lar = heim). Por outro lado, o ‘secreto e oculto’ pode ser sentido como ‘escondido, furtivo e estranho na avaliação de outros excluídos” ( Dicionário comentado do alemão de Freud, p. 231). 80
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ausente. Relacionando o estudo do t<strong>em</strong>a do seqüestro na poesia “popular” com seu<br />
estudo na poesia “culta”, assinala Telê A. Lopez que, para <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, o<br />
seqüestro da dona ausente “consolida o mesmo escudo impalpável do amor e medo<br />
que analisa nos poetas românticos, moldado por interdições e obstáculos interiores<br />
que exprim<strong>em</strong> a dissociação sexo e sentimento amoroso” 174 .<br />
A veneração à figura materna se repete e se <strong>de</strong>sdobra <strong>em</strong> variadas formas,<br />
como na <strong>de</strong>dicatória que o poeta faz à mãe na Lira dos vinte anos, on<strong>de</strong> lê, <strong>Mário</strong>, o<br />
<strong>de</strong>sejo do poeta <strong>de</strong> retorno ao seio materno 175 . O ápice <strong>de</strong>sse amor – “o seu <strong>de</strong>lírio, a<br />
sua maior elevação consciente, o seu maior gozo inconsciente” – é a experiência<br />
relatada como “o importante caso da cama”. A mãe do poeta conta-lhe que tivera um<br />
pesa<strong>de</strong>lo com ele: via o filho morrer na própria cama. Menos <strong>de</strong> três meses <strong>de</strong>pois,<br />
Álvares <strong>de</strong> Azevedo adoece e a mãe, esquecida do que sonhara, oferece ao filho seu<br />
leito. Este inicialmente recusa, mas dias <strong>de</strong>pois é ele qu<strong>em</strong> pe<strong>de</strong> à mãe que se <strong>de</strong>ite <strong>em</strong><br />
sua cama, on<strong>de</strong> v<strong>em</strong> a morrer. <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, negando-se a aceitar o caso relatado<br />
como uma simples questão <strong>de</strong> “sentimentalismo romântico”, pois pensava ser o amor<br />
pela mãe, <strong>em</strong> Álvares <strong>de</strong> Azevedo, “excessivo e obcecante”, convoca as noções<br />
cont<strong>em</strong>porâneas da psicologia: “Complexo <strong>de</strong> Édipo, dirão os psicanalistas... Mas a<br />
mãe <strong>de</strong> Álvares <strong>de</strong> Azevedo entrou também no jogo muito... Talvez menos<br />
inocent<strong>em</strong>ente do que era lícito esperar daquele t<strong>em</strong>po discreto” 176 .<br />
Mas, além do amor à mãe e às irmãs, os nossos jovens poetas românticos,<br />
conforme o ensaio <strong>de</strong> <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, transformavam a mulher, <strong>em</strong> seus versos,<br />
<strong>em</strong> anjo, virg<strong>em</strong>, criança, santa, <strong>de</strong>nominações que como diz o autor “a exclu<strong>em</strong> (a<br />
mulher) <strong>de</strong> sua plenitu<strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina”. Esse “respeito à mulher” seria uma das facetas do<br />
medo do amor nos românticos, pois como relata Álvares <strong>de</strong> Azevedo numa carta ao<br />
amigo Luís Antonio da Silva Nunes <strong>em</strong> 1848, “às santas adora-se, mas não se ama”.<br />
O t<strong>em</strong>a do “amar s<strong>em</strong> ser amado” é uma outra forma <strong>de</strong> manifestação do amor e do<br />
medo na poesia, através <strong>de</strong> que os rapazes “se afastam da experiência do amor,<br />
criando o amor irrealizável por ingratidão, não correspondência, infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, e outras<br />
173 M. <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, “Amor e medo”, Aspectos da literatura brasileira, p. 210.<br />
174 T. A. Lopez, Ed. genética e crítica <strong>de</strong> Balança, Trombeta e Battleship, p. 61.<br />
175 Para Freud o protótipo <strong>de</strong> toda relação amorosa seria uma criança segurando o peito <strong>de</strong> sua mãe, <strong>de</strong><br />
modo que o amor seria a repetição <strong>de</strong>sta satisfação primária. Miller assinala que o amor no sentido <strong>de</strong><br />
Freud incluiria o gozo, diferent<strong>em</strong>ente <strong>de</strong> Lacan que separa os campos do amor e do gozo (Logicas <strong>de</strong><br />
la vida amorosa, p. 23).<br />
176 M. <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, op. cit., pp. 219-220.<br />
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