Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...
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narrador relata as vicissitudes do “primeiro dos quatro amores eternos”, pela prima Maria, surgido em meio às brincadeiras infantis. O conto inicia assinalando o que em termos freudianos poderia ser lido como a passagem do amor narcísico para o amor objetal 144 : “Depois do amor grande por mim que brotou aos três anos e durou até os cinco mais ou menos, logo o meu amor se dirigiu para uma espécie de prima longínqua que freqüentava a nossa casa” 145 . A “divina melancolia” da solidão compartilhada com Maria foi alterada pelo esplendor do primeiro beijo aos nove anos. Brincar de família, não de comidinha, mas de ir viver juntos nos quartos da sisuda casa de tia velha. Havia no ar um clima de perigo iminente, ainda que Juca não chegasse a tentar nenhuma das safadezas já sabidas. Maria, com seus cabelos assustados, decreta que é hora de dormir e o menino, estarrecido, vai deitar-se timidamente ao lado dela. A vontade de espirrar, provocada pelo contato com os cabelos da prima, vai sendo controlada, pois marido não espirra, e Juca, esquecido de tudo, dos outros lá na sala de visitas, mergulha nos prazeres nascentes: Fui afundando o rosto naquela cabeleira e veio a noite, sinão os cabelos (mas juro que eram cabelos macios) me machucavam os olhos. Depois que não vi nada, ficou fácil continuar enterrando a cara, a cara toda, a alma, a vida, naqueles cabelos, que maravilha! até que o meu nariz tocou num pescocinho roliço. Então fui empurrando os meus lábios, tinha uns bonitos lábios grossos, nem eram lábios, era beiço, minha boca foi ficando encanudada até que encontrou o pescocinho roliço. Será que ela dorme de verdade?... Me ajeitei muito sem cerimônia, mulherzinha! e então beijei. Quem falou que este mundo é ruim! só recordar... Beijei Maria, rapazes! eu nem sabia beijar, está claro, só beijava mamãe, boca fazendo bulha, contato sem nenhum calor sensual 146 . 144 É no artigo de 1914 sobre o narcisismo, que Freud desenvolve a hipótese de uma libido que antes de investir os objetos, investe narcisicamente o próprio eu. Diz ele: “Assim formamos a idéia de que há um investimento libidinal original do eu, parte da qual é posteriormente transmitida a objetos, mas que fundamentalmente persiste e está relacionada com os investimentos objetais, assim como o corpo de uma ameba está relacionado com os pseudópodos que produz” (“Introducción del narcisismo”, op. cit., p. p. 73). Segundo Freud, ultrapassar os limites do narcisismo torna-se fundamental para nossa vida psíquica, ligando a libido a objetos, pois “devemos começar a amar a fim de não adoecermos”. O amor objetal implicaria a renúncia de uma parcela de nosso narcisismo. De qualquer modo, com este texto sobre o narcisismo, temos que uma pessoa pode apresentar uma escolha objetal narcísica, o que significa tomar a si mesmo – o que se foi, o que se é ou o que se gostaria de ser – como objeto de amor; a outra maneira de amar seria conforme com o tipo anaclítico ou de ligação, isto é, a mulher que nos alimentou ou o homem que nos protegeu. 145 M. de Andrade, “Vestida de preto”, Contos Novos, p.7. 146 Idem, p. 08. Esta passagem poderia ganhar o título de “Un hémisphère dans une chevelure” numa alusão ao poema em prosa de Baudelaire, publicado nos Petits poèmes en prose ou, ainda, “La chevelure”, poema em verso de Les fleurs du mal. Também nos leva a pensar na parcialidade das pulsões, da sexualidade humana. Juca se relaciona com partes do corpo de Maria – o pescoço, os 67
Ao final do conto, o narrador Juca nos diz: “Foi este o primeiro dos quatro amores eternos que fazem da minha vida uma grave condensação interior. Sou falsamente um solitário. Quatro amores me acompanham, cuidam de mim, vêm conversar comigo” 147 . O amor à Maria fora, antes do conto, motivo dos poemas que compõem o “Tempo de Maria” em Remate de Males. Assim também, em várias passagens do Turista aprendiz, é possível encontrar alusões à amada, a seus cabelos, ao seu “perfil duro”, que por sua vez aparece na Uiara de Macunaíma, como nos mostra Telê A. Lopez. 148 . O conto “Atrás da Catedral de Ruão” traz a libido em sua face predominantemente sexual, seja nas conversas apimentadas das duas adolescentes recém-chegadas da França com um vocabulário afetado pelas modas freudianas, ou em sua cara sintomática, onde uma mademoiselle quarentona, “sempre na sua blusa alvíssima de rendinhas crespas”, solta espirros nervosos, cora e sente calores. Mademoiselle encarna perfeitamente a histérica que ensinou a Freud que há uma imbricação entre desejo e linguagem, pondo-lhe à mostra os mecanismos do inconsciente. Em meio a risinhos, e frases cheias de reticências, iniciava-se um jogo entre as meninas e a preceptora, no qual a todo momento a linguagem roçava o sexo, dando lugar a uma língua franco-brasileira que ia se constituindo neste entre-jogo, no qual, freqüentemente, a professora “se trompe de lisière”. Assim, mâle se confunde com mal, ocasião em que personagens masculinos parecem “ frôler” a senhorita que estava “tomada por um vendaval de mal do sexo”. De ato falho em ato falho, entre um equívoco e outro, ao atravessar a barreira da repressão, é o desejo inconsciente de Mademoiselle que, deixando suas marcas, vai obtendo êxito. E o narrador nos conta como tudo começou, não perdendo de vista o lugar da causalidade para Freud: desde criança Mademoiselle cantarolava uma canção em que Lisette, indo colher margaridas, “topa com um cavaleiro na ‘lisière du bois’. Está claro que o cavaleiro tomava Lisette na garupa e sucedia ser um príncipe ‘trali-lan-lère, trali-lan-la’” 149 . Nossa donzela, aos trinta anos, começou a se inquietar com a margarida que estava deixando de colher na primavera, e certo dia em que cantava aquela canção, quando alcançou a lisière, emudeceu sufocada, não podendo mais cantar. “Mademoiselle cabelos – através de partes de seu corpo (o nariz, a boca), e não com uma suposta totalidade ou unidade da prima. Como diz Lacan, a sexualidade humana se exerce ao nível das pulsões parciais. 147 Idem, p. 18. 148 Nota da Edição de O turista aprendiz, p. 81. 149 M. de Andrade, “Atrás da Catedral de Ruão”, op. cit., p. 51. 68
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Ao final do conto, o narrador Juca nos diz: “Foi este o primeiro dos quatro<br />
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ao seu “perfil duro”, que por sua vez aparece na Uiara <strong>de</strong> Macunaíma, como nos<br />
mostra Telê A. Lopez. 148 .<br />
O conto “Atrás da Catedral <strong>de</strong> Ruão” traz a libido <strong>em</strong> sua face<br />
predominant<strong>em</strong>ente sexual, seja nas conversas apimentadas das duas adolescentes<br />
recém-chegadas da França com um vocabulário afetado pelas modas freudianas, ou<br />
<strong>em</strong> sua cara sintomática, on<strong>de</strong> uma mad<strong>em</strong>oiselle quarentona, “s<strong>em</strong>pre na sua blusa<br />
alvíssima <strong>de</strong> rendinhas crespas”, solta espirros nervosos, cora e sente calores.<br />
Mad<strong>em</strong>oiselle encarna perfeitamente a histérica que ensinou a Freud que há uma<br />
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estava “tomada por um vendaval <strong>de</strong> mal do sexo”. De ato falho <strong>em</strong> ato falho, entre um<br />
equívoco e outro, ao atravessar a barreira da repressão, é o <strong>de</strong>sejo inconsciente <strong>de</strong><br />
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como tudo começou, não per<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> vista o lugar da causalida<strong>de</strong> para Freud: <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
criança Mad<strong>em</strong>oiselle cantarolava uma canção <strong>em</strong> que Lisette, indo colher<br />
margaridas, “topa com um cavaleiro na ‘lisière du bois’. Está claro que o cavaleiro<br />
tomava Lisette na garupa e sucedia ser um príncipe ‘trali-lan-lère, trali-lan-la’” 149 .<br />
Nossa donzela, aos trinta anos, começou a se inquietar com a margarida que estava<br />
<strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> colher na primavera, e certo dia <strong>em</strong> que cantava aquela canção, quando<br />
alcançou a lisière, <strong>em</strong>u<strong>de</strong>ceu sufocada, não po<strong>de</strong>ndo mais cantar. “Mad<strong>em</strong>oiselle<br />
cabelos – através <strong>de</strong> partes <strong>de</strong> seu corpo (o nariz, a boca), e não com uma suposta totalida<strong>de</strong> ou unida<strong>de</strong><br />
da prima. Como diz Lacan, a sexualida<strong>de</strong> humana se exerce ao nível das pulsões parciais.<br />
147 Id<strong>em</strong>, p. 18.<br />
148 Nota da Edição <strong>de</strong> O turista aprendiz, p. 81.<br />
149 M. <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, “Atrás da Catedral <strong>de</strong> Ruão”, op. cit., p. 51.<br />
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