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Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...

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ambos, que se encontraram apenas algumas vezes. O texto crítico acentua a<br />

característica metonímica do <strong>de</strong>sejo que, diferenciando-se da d<strong>em</strong>anda, aponta para o<br />

vazio e para a falta, e não para a posse do objeto. A autora ilustra s<strong>em</strong>elhante caráter<br />

do <strong>de</strong>sejo com uma graciosa frase <strong>de</strong> Henriqueta: “Quando eu era pequena, <strong>Mário</strong>, e<br />

alguém me dizia que não tinha qualquer cousa, que eu queria, costumava bater o pé:<br />

‘Mas eu quero s<strong>em</strong> ter!’ A frase ficou célebre na família, ainda hoje caçoam<br />

comigo”. 111 A presença s<strong>em</strong>pre adiada, a distância física que os separa, é ultrapassada<br />

pela sublimação alcançada via o encontro poético dos dois escritores <strong>em</strong> suas<br />

correspondências. A maneira própria <strong>em</strong> que se tece a relação entre <strong>Mário</strong> e<br />

Henriqueta não somente nos r<strong>em</strong>ete ao seqüestro da dona ausente, como também<br />

evi<strong>de</strong>ncia a natureza simbólica da linguag<strong>em</strong>, que nos con<strong>de</strong>na como seres falantes a<br />

entrar na roda-viva do significante, saltando <strong>de</strong> uma palavra à outra, a ro<strong>de</strong>ar o vazio<br />

central da linguag<strong>em</strong>, o objeto para s<strong>em</strong>pre perdido.<br />

No lugar do gozo perdido se situa a arte, como articulação entre o significante<br />

e a pulsão, como vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> criação a partir do nada, na aventura sublimatória. A tese<br />

<strong>de</strong> Lacan, como já diss<strong>em</strong>os, é que a arte se realiza <strong>em</strong> torno <strong>de</strong>sse vazio <strong>de</strong> gozo.<br />

Contudo, ao ocupar este lugar, o objeto <strong>de</strong> arte ganha o valor da Coisa,<br />

transformando-se num objeto único. Miller, citando Degas, dirá a respeito do artista<br />

que, ao construir uma obra, “põe o seu corpo”, mais além do sentido que produz.<br />

Quando já dispuser da sua teoria do objeto pequeno a, Lacan dirá que o pintor pinta<br />

com o objeto a, olhar que <strong>de</strong>le se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>u. Neste sentido, pergunta-se, acerca do<br />

gozo, como pintaria uma serpente, e respon<strong>de</strong>: “seria necessário que <strong>de</strong>ixe cair suas<br />

escamas; e um pássaro, suas plumas”. 112<br />

Para terminar este capítulo, gostaria <strong>de</strong> enfatizar que a experiência <strong>de</strong>nominada<br />

por <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> <strong>de</strong> seqüestro da dona ausente, ao transformar a sauda<strong>de</strong>, o<br />

sofrimento do marujo ou do colono recém-chegado à terra <strong>em</strong> quadrinhas e cantigas,<br />

transmuda o que seria um sofrimento individual <strong>em</strong> experiência compartilhada. Este<br />

110 E. M. <strong>de</strong> Souza, “A Dona Ausente”, A pedra mágica do discurso, p. 218.<br />

111 Carta <strong>de</strong> Henriqueta Lisboa a <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> (12/11/39) apud E. M. <strong>de</strong> Souza, op. cit., p. 225. O<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, ou <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ter um <strong>de</strong>sejo insatisfeito – como tão b<strong>em</strong> o ilustrou Freud no capítulo<br />

IV <strong>de</strong> A interpretação dos sonhos (“A <strong>de</strong>sfiguração onírica”) ao abordar o sonho da “Bela açougueira”<br />

– marca a maneira pela qual o <strong>de</strong>sejo se apresenta na histeria, enquanto na neurose obsessiva ele se<br />

mostra como <strong>de</strong>sejo impossível. Este, no entanto, não é o único modo que t<strong>em</strong> o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> funcionar;<br />

numa das perspectivas <strong>de</strong> fim <strong>de</strong> análise expressa <strong>em</strong> termos <strong>de</strong> um atravessamento da fantasia, o<br />

<strong>de</strong>sejo, articulado à pulsão, entraria numa mecânica <strong>de</strong> realizações e não mais como o sonho s<strong>em</strong>pre<br />

postergado do neurótico.<br />

112 Cf J.-A. Miller, Los signos <strong>de</strong>l goce, p.324.<br />

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