Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...

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26.02.2014 Views

da beleza é assinalada por Freud quando a situa como um dos narcóticos aos quais a civilização recorre para alívio do seu mal-estar: “À frente das satisfações obtidas através da fantasia ergue-se a fruição das obras de arte, fruição que, por intermédio do artista, é tornada acessível inclusive àqueles que não são criadores”. 108 Nessa mesma linha, um dos convivas d’ O banquete de Mário de Andrade afirma que através da arte se buscaria remediar a falta de perfeição da vida humana. E vai além, ao defender o não-conformismo na arte, a necessidade de fazer melhor, de ultrapassar o estabelecido: “‘Fazer outra arte’ é a única receita contra a doença estética da imperfeição”. 109 A perda de gozo que implicou o nascimento do sujeito para a linguagem e a fala constitui-o como falta em ser ao preço da sua alienação no significante – o significante representa um sujeito para outro significante – e da falta central que habita a sexualidade humana. De certo modo, o seqüestro da dona ausente parece dramatizar essa falta central na linguagem e na sexualidade humanas. O ensaio de Eneida M. de Souza, “A dona ausente”, permitiu esta articulação a partir da análise da relação epistolar entre Mário de Andrade e a poetisa mineira Henriqueta Lisboa. Foi no ano de 1939 que eles se conheceram, por ocasião da ida de Mário a Belo Horizonte para proferir as conferências “O seqüestro da dona ausente” e “Música de feitiçaria no Brasil”. Henriqueta, que não pôde assistir à primeira delas, joga com o tema da ausência quando se desculpa ao conferencista: Um compromisso anterior com a União Universitária Feminina me impediu de admirar de perto, ontem, seu fascinante espírito. Enquanto o Sr. falava em Dona Ausente, eu estava sendo seqüestrada na Faculdade de Direito (de Direito, imagine!). Aguardo, porém, o ensejo de assistir à sua segunda conferência e, mesmo, de vê-lo antes, caso me dê a honra de uma visita, o que me causaria extraordinária satisfação. 110 A correspondência entre os dois inicia-se, assim, sob o signo de uma ausência, a da mulher, que nas cartas será muitas vezes idealizada – “rincão de paz, ilha de sombra” – tal como o era a donna do cancioneiro popular ibérico. O vínculo epistolar, a troca de palavras, poemas e livros suplantará o encontro em presença, a convivência de 107 J. Lacan, “Da criação ex nihilo”, A ética da psicanálise, O seminário, livro VII, p. 153. 108 S. Freud, “O mal-estar na civilização” (1930), Os pensadores, p. 144. 109 M. de Andrade, O banquete, p.60. Não podemos esquecer que na arte moderna encontramos obras que funcionam como disruptoras de sentido, causando estranhamento e desacomodando o espectador, capturando-o num mais além do princípio do prazer, mais além da beleza. 51

ambos, que se encontraram apenas algumas vezes. O texto crítico acentua a característica metonímica do desejo que, diferenciando-se da demanda, aponta para o vazio e para a falta, e não para a posse do objeto. A autora ilustra semelhante caráter do desejo com uma graciosa frase de Henriqueta: “Quando eu era pequena, Mário, e alguém me dizia que não tinha qualquer cousa, que eu queria, costumava bater o pé: ‘Mas eu quero sem ter!’ A frase ficou célebre na família, ainda hoje caçoam comigo”. 111 A presença sempre adiada, a distância física que os separa, é ultrapassada pela sublimação alcançada via o encontro poético dos dois escritores em suas correspondências. A maneira própria em que se tece a relação entre Mário e Henriqueta não somente nos remete ao seqüestro da dona ausente, como também evidencia a natureza simbólica da linguagem, que nos condena como seres falantes a entrar na roda-viva do significante, saltando de uma palavra à outra, a rodear o vazio central da linguagem, o objeto para sempre perdido. No lugar do gozo perdido se situa a arte, como articulação entre o significante e a pulsão, como vontade de criação a partir do nada, na aventura sublimatória. A tese de Lacan, como já dissemos, é que a arte se realiza em torno desse vazio de gozo. Contudo, ao ocupar este lugar, o objeto de arte ganha o valor da Coisa, transformando-se num objeto único. Miller, citando Degas, dirá a respeito do artista que, ao construir uma obra, “põe o seu corpo”, mais além do sentido que produz. Quando já dispuser da sua teoria do objeto pequeno a, Lacan dirá que o pintor pinta com o objeto a, olhar que dele se desprendeu. Neste sentido, pergunta-se, acerca do gozo, como pintaria uma serpente, e responde: “seria necessário que deixe cair suas escamas; e um pássaro, suas plumas”. 112 Para terminar este capítulo, gostaria de enfatizar que a experiência denominada por Mário de Andrade de seqüestro da dona ausente, ao transformar a saudade, o sofrimento do marujo ou do colono recém-chegado à terra em quadrinhas e cantigas, transmuda o que seria um sofrimento individual em experiência compartilhada. Este 110 E. M. de Souza, “A Dona Ausente”, A pedra mágica do discurso, p. 218. 111 Carta de Henriqueta Lisboa a Mário de Andrade (12/11/39) apud E. M. de Souza, op. cit., p. 225. O desejo de desejo, ou desejo de ter um desejo insatisfeito – como tão bem o ilustrou Freud no capítulo IV de A interpretação dos sonhos (“A desfiguração onírica”) ao abordar o sonho da “Bela açougueira” – marca a maneira pela qual o desejo se apresenta na histeria, enquanto na neurose obsessiva ele se mostra como desejo impossível. Este, no entanto, não é o único modo que tem o desejo de funcionar; numa das perspectivas de fim de análise expressa em termos de um atravessamento da fantasia, o desejo, articulado à pulsão, entraria numa mecânica de realizações e não mais como o sonho sempre postergado do neurótico. 112 Cf J.-A. Miller, Los signos del goce, p.324. 52

da beleza é assinalada por Freud quando a situa como um dos narcóticos aos quais a<br />

civilização recorre para alívio do seu mal-estar: “À frente das satisfações obtidas<br />

através da fantasia ergue-se a fruição das obras <strong>de</strong> arte, fruição que, por intermédio do<br />

artista, é tornada acessível inclusive àqueles que não são criadores”. 108 Nessa mesma<br />

linha, um dos convivas d’ O banquete <strong>de</strong> <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> afirma que através da arte<br />

se buscaria r<strong>em</strong>ediar a falta <strong>de</strong> perfeição da vida humana. E vai além, ao <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o<br />

não-conformismo na arte, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer melhor, <strong>de</strong> ultrapassar o<br />

estabelecido: “‘Fazer outra arte’ é a única receita contra a doença estética da<br />

imperfeição”. 109<br />

A perda <strong>de</strong> gozo que implicou o nascimento do sujeito para a linguag<strong>em</strong> e a<br />

fala constitui-o como falta <strong>em</strong> ser ao preço da sua alienação no significante – o<br />

significante representa um sujeito para outro significante – e da falta central que<br />

habita a sexualida<strong>de</strong> humana. De certo modo, o seqüestro da dona ausente parece<br />

dramatizar essa falta central na linguag<strong>em</strong> e na sexualida<strong>de</strong> humanas. O ensaio <strong>de</strong><br />

Eneida M. <strong>de</strong> Souza, “A dona ausente”, permitiu esta articulação a partir da análise da<br />

relação epistolar entre <strong>Mário</strong> <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e a poetisa mineira Henriqueta Lisboa. Foi<br />

no ano <strong>de</strong> 1939 que eles se conheceram, por ocasião da ida <strong>de</strong> <strong>Mário</strong> a Belo Horizonte<br />

para proferir as conferências “O seqüestro da dona ausente” e “Música <strong>de</strong> feitiçaria no<br />

Brasil”. Henriqueta, que não pô<strong>de</strong> assistir à primeira <strong>de</strong>las, joga com o t<strong>em</strong>a da<br />

ausência quando se <strong>de</strong>sculpa ao conferencista:<br />

Um compromisso anterior com a União Universitária F<strong>em</strong>inina me impediu <strong>de</strong><br />

admirar <strong>de</strong> perto, ont<strong>em</strong>, seu fascinante espírito. Enquanto o Sr. falava <strong>em</strong><br />

Dona Ausente, eu estava sendo seqüestrada na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito (<strong>de</strong><br />

Direito, imagine!). Aguardo, porém, o ensejo <strong>de</strong> assistir à sua segunda<br />

conferência e, mesmo, <strong>de</strong> vê-lo antes, caso me dê a honra <strong>de</strong> uma visita, o que<br />

me causaria extraordinária satisfação. 110<br />

A correspondência entre os dois inicia-se, assim, sob o signo <strong>de</strong> uma ausência, a da<br />

mulher, que nas cartas será muitas vezes i<strong>de</strong>alizada – “rincão <strong>de</strong> paz, ilha <strong>de</strong> sombra”<br />

– tal como o era a donna do cancioneiro popular ibérico. O vínculo epistolar, a troca<br />

<strong>de</strong> palavras, po<strong>em</strong>as e livros suplantará o encontro <strong>em</strong> presença, a convivência <strong>de</strong><br />

107 J. Lacan, “Da criação ex nihilo”, A ética da psicanálise, O s<strong>em</strong>inário, livro VII, p. 153.<br />

108 S. Freud, “O mal-estar na civilização” (1930), Os pensadores, p. 144.<br />

109 M. <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, O banquete, p.60. Não pod<strong>em</strong>os esquecer que na arte mo<strong>de</strong>rna encontramos obras<br />

que funcionam como disruptoras <strong>de</strong> sentido, causando estranhamento e <strong>de</strong>sacomodando o espectador,<br />

capturando-o num mais além do princípio do prazer, mais além da beleza.<br />

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