Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...
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nos mostra Miller, reside aí a possibilidade de pensar o inconsciente freudiano na sua vacuidade, na medida em que está estruturado em termos dos significantes na sua pura diferença. A partir destas considerações, podemos dizer, contrariamente ao que afirma Baudouin sobre a psicanálise, que a ordem simbólica não se reduz às funções de disfarce e censura, mas que consiste na possibilidade mesma do inconsciente, do sujeito e do tecido cultural que nos envolve. 74 Por outro lado, se concordamos com o pressuposto de que o referente está perdido ou, como diz Lacan, que a linguagem é a morte da coisa, não restaria outra possibilidade além de disfarçar, representar, simbolizar. O sonho como formação do inconsciente não é um baú de arcaísmos, tampouco mero continente de forças pulsionais. É estruturado do mesmo modo que o inconsciente, feito de significantes sem sentido, isto é, sem uma significação prévia, e ordenado pelas leis da linguagem, a metáfora e a metonímia. De todo modo, Freud e aqueles que se orientaram por suas elaborações teóricas não dispunham da diferenciação dos três registros – simbólico, imaginário, real – proposta por J. Lacan, fundamentando-se em matrizes teóricas que produziram certos efeitos em sua época. O recalcamento Retomando a temática do seqüestro da dona ausente, vimos até agora, a partir dos exemplos utilizados por Mário de Andrade, que este percebe nos mecanismos de substituições que envolvem a mulher ausente, não um simples caso de analogia mas, centralmente, uma questão de recalcamento, processo descrito por Freud e retomado por Lacan. Cabe lembrar que a repressão é uma das quatro vicissitudes pelas quais pode passar a pulsão para alcançar a satisfação, quais sejam: a reversão ao seu oposto, o retorno em direção ao próprio eu, a repressão e a sublimação. 75 O clássico artigo de 1915, A repressão (Die Verdrängung), enuncia que “a essência da repressão consiste em afastar algo da consciência, mantendo-o à distância”. 76 O que é preciso afastar da consciência, pôr de lado (die Abweisung), é o que poderá provocar desprazer. Ao perguntar-se pelas condições que motivaram a repressão, Freud encontra como 73 J-A. Miller, Recorrido de Lacan, p. 11. 74 Para Lacan, a linguagem é causa do inconsciente e o sujeito é efeito dessa estrutura significante. 75 Para efeitos do que ora aqui estudamos, trataremos somente da repressão e sublimação. Os outros dois destinos pulsionais – retorno em direção ao próprio eu e reversão ao seu oposto – podem ser pesquisados em S. Freud “Pulsiones y destinos de pulsión” (1915). Obras completas, vol. XIV. 35
esposta o surgimento de um forte desejo, incompatível com certas exigências e ideais do sujeito. Nessas circunstâncias, o prazer da satisfação pulsional transformar-se-ia em desprazer, produzindo, portanto, “prazer em um lugar e desprazer em outro”. 77 Freud supõe um primeiro momento da repressão, uma repressão primária (Urverdrängung 78 ), na qual ocorreria uma fixação do representante psíquico da pulsão, após ter o seu acesso à consciência negado. A repressão fica assim associada a um processo de inscrição significante, o que em termos freudianos seria a fixação do Vorstellungsrepräsentanz. Para Lacan, a tradução do termo deve ser representante da representação, este significante sem um significado pontual e só localizável numa rede. Como indica Freud, o Vorstellungsrepräsentanz constitui o núcleo do reprimido, o ponto de atração que chama para si os outros recalques. É preciso supor a anterioridade lógica da repressão primária, essa força de atração, como condição da repressão secundária. O que foi primariamente reprimido sustenta a repressão propriamente dita, e ao mesmo tempo se exclui do retorno do reprimido. A Urverdrängung designa o que não pode vir a ser dito, constituindo um limite à rememoração. No seminário (inédito) sobre a identificação, Lacan refere-se a um significante original, marca sobre o sujeito do reprimido primordial, que passou à existência inconsciente. O representante primordialmente reprimido implica um ponto de carência na cadeia associativa, de forma que o discurso gira em torno do que não se pode dizer, isto é, é metonímico em relação ao reprimido originário. No referido artigo sobre a repressão, Freud põe em relevo a forte correlação entre repressão e inconsciente. Juan Carlos Cosentino, seguindo Freud, afirma que “não é possível sustentar a repressão sem, simultaneamente, incluir a constituição do inconsciente (...) repressão e inconsciente são conceitos necessariamente solidários”. 79 Estas afirmações levam a que se pense na repressão primária como este ato inaugural da constituição do aparelho psíquico que ela funda e divide em consciente e inconsciente. 76 S. Freud, La represión (1915), Obras completas, vol. XIV, p. 142. 77 Idem, ibidem. Entendemos aqui, em termos do que configurará a segunda tópica freudiana do psiquismo, Isso (id), Eu (ego) e Supereu (superego), prazer a nível do Isso e desprazer para o Supereu. A primeira tópica consiste na divisão do aparelho psíquico em inconsciente, pré-consciente e consciente. 78 Conforme Luiz Hanns “ Urverdrängung contém o prefixo ur-, utilizado para designar a ancestralidade e o fato de ser o primeiro de uma linhagem; é um termo de certa solenidade mítica e, até certo ponto, é surpreendente seu emprego neste contexto”. ( Dicionário comentado do Alemão de Freud, p.365). 79 J. C. Cosentino, “La represión primária”, Construccción de los conceptos freudianos, p. 149. 36
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esposta o surgimento <strong>de</strong> um forte <strong>de</strong>sejo, incompatível com certas exigências e i<strong>de</strong>ais<br />
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<strong>em</strong> <strong>de</strong>sprazer, produzindo, portanto, “prazer <strong>em</strong> um lugar e <strong>de</strong>sprazer <strong>em</strong> outro”. 77<br />
Freud supõe um primeiro momento da repressão, uma repressão primária<br />
(Urverdrängung 78 ), na qual ocorreria uma fixação do representante psíquico da<br />
pulsão, após ter o seu acesso à consciência negado. A repressão fica assim associada a<br />
um processo <strong>de</strong> inscrição significante, o que <strong>em</strong> termos freudianos seria a fixação do<br />
Vorstellungsrepräsentanz. Para Lacan, a tradução do termo <strong>de</strong>ve ser representante da<br />
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repressão secundária. O que foi primariamente reprimido sustenta a repressão<br />
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po<strong>de</strong> dizer, isto é, é metonímico <strong>em</strong> relação ao reprimido originário.<br />
No referido artigo sobre a repressão, Freud põe <strong>em</strong> relevo a forte correlação<br />
entre repressão e inconsciente. Juan Carlos Cosentino, seguindo Freud, afirma que<br />
“não é possível sustentar a repressão s<strong>em</strong>, simultaneamente, incluir a constituição do<br />
inconsciente (...) repressão e inconsciente são conceitos necessariamente solidários”. 79<br />
Estas afirmações levam a que se pense na repressão primária como este ato inaugural<br />
da constituição do aparelho psíquico que ela funda e divi<strong>de</strong> <strong>em</strong> consciente e<br />
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76 S. Freud, La represión (1915), Obras completas, vol. XIV, p. 142.<br />
77 Id<strong>em</strong>, ibid<strong>em</strong>. Entend<strong>em</strong>os aqui, <strong>em</strong> termos do que configurará a segunda tópica freudiana do<br />
psiquismo, Isso (id), Eu (ego) e Supereu (superego), prazer a nível do Isso e <strong>de</strong>sprazer para o Supereu.<br />
A primeira tópica consiste na divisão do aparelho psíquico <strong>em</strong> inconsciente, pré-consciente e<br />
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Conforme Luiz Hanns “ Urverdrängung contém o prefixo ur-, utilizado para <strong>de</strong>signar a<br />
ancestralida<strong>de</strong> e o fato <strong>de</strong> ser o primeiro <strong>de</strong> uma linhag<strong>em</strong>; é um termo <strong>de</strong> certa solenida<strong>de</strong> mítica e, até<br />
certo ponto, é surpreen<strong>de</strong>nte seu <strong>em</strong>prego neste contexto”. ( Dicionário comentado do Al<strong>em</strong>ão <strong>de</strong><br />
Freud, p.365).<br />
79 J. C. Cosentino, “La represión primária”, Construccción <strong>de</strong> los conceptos freudianos, p. 149.<br />
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