Rastros Freudianos em Mário de Andrade - Universidade Federal ...

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26.02.2014 Views

Vida Literária Freud II Tristão de Athayde O caso Freud indica bem vivamente como o mundo moderno é sinceramente materialista. Nenhum pensador contemporâneo ousou expor, com tanta audácia, as teorias mais repugnantes ao que havia de mais delicado, de mais intangível na alma dos homens: a pureza do sentimento filial e o respeito pela inocência infantil. Freud ousou. E ousou baseado nas próprias idéias que esses homens, que ele vinha escandalizar, pregavam. Freud teve um mérito raro de ser conseqüente consigo mesmo, de ir ao fim lógico das idéias que os demais se limitavam a aceitar apenas em princípio. O movimento, de que ele é hoje em dia o resultado mais típico, e que encheu o século XIX do tumulto de suas revoluções sucessivas, pode-se definir como sendo: a divinização do homem pela sua animalização. Não é paradoxo. É o resultado da mais rigorosa observação, como vimos na crônica anterior. O século XIX, preparou a animalização do homem. Em biologia procurou mostrar o encadeamento de todas as espécies animais, sem exclusão da espécie humana, simples ramos de um tronco puramente animal. Em psicologia, procurou combater toda forma substancial, completando a obra idêntica de Descartes na física e fundindo a alma no corpo. Em sociologia, procurou subordinar o homem às suas exclusivas necessidades econômicas, reduzindo a história a uma apologética do materialismo. Em filosofia, procurou excluir toda metafísica, limitando a especulação aos dados do conhecimento experimental. Em religião, procurou afastar todo transcendentalismo e toda exigência de absoluto limitando-se ao mais restrito relativismo ou simbolismo religioso. Enfim, em todos os gêneros do saber ou da atividade humana, o que o pensamento típico do século XIX procurou fazer foi arrancar ao homem os três postulados que Kant ainda julgava fundamentais e para a defesa dos quais elaborou toda a sua crítica: a existência de Deus, a imortalidade da alma, a liberdade humana. Kant forjou, no século XVIII as armas para sua própria negação no século XIX. Da mesma forma que Comte forjou no século XIX as armas para sua própria negação no século XX. Todo erro é vencido pelo próprio erro que provoca. Basta comparar a atitude de Kant, em face daqueles três postulados fundamentais de sua razão prática, com a atitude de Haeckel, de Spencer ou de Berthelot. A crítica da razão pura, para eles, exprimia a própria verdade. Mas todos repeliam a crítica da razão prática, como sendo uma emancipação deficiente dos erros anteriores. E negavam todos os três postulados cuja defesa Kant julgou fazer com mais êxito que a filosofia anterior. O erro do século XIX vinha completar o erro do século XVIII, ultrapassando-o por via de negação parcial. O mesmo ia suceder entre o século XIX e o nosso século, entre dois pensadores como Comte e Freud, por exemplo. Comte preparou o reinado de Freud, hoje florescente como nunca em todos os meios que se dizem avançados, em pensamento. E entretanto nada demais oposto a Comte do que Freud nos resultados extremos a que chegou. O freudismo, sendo hoje em dia o último elo do positivismo, não poderá ser aceito por nenhum puro partidário de Comte, se acaso ainda resta algum. xxx

E o mais curioso é que o mesmo já começa a suceder a Freud. A doutrina de Freud termina em um forte moralismo, nos domínios da psicologia individual, e em forte autoritarismo nos domínios da psicologia social. Freud mostrou, em toda a sua doutrina, a supremacia dos instintos, e entretanto termina sempre por invocar a necessidade absoluta do domínio dos instintos, da Triebverzichtung, tanto na vida individual como coletiva. Não há psicanalista que não acentue esse caráter moralista da doutrina, na vida psicológica, pelo domínio da censura, que o próprio Freud acentuava tão vivamente nas suas primeiras conferências, comparando o instinto a um intruso que quisesse perturbar a ordem da conferência que fazia. Ou, como escreve um pastor protestante, que desde 1905 é um dos mais acérrimos partidários de Freud: “desde o início que o esforço psicanalítico se faz de mãos dadas com preocupações éticas.” E aponta três conquistas fundamentais da psicanálise para a ética: a demonstração da importância do inconsciente para a ética; o emprego de princípios biológico-higiênicos para a ética; e o postulado da importância individual dos preceitos éticos. (Oscar Pfister. – Psychoanalisy und Weltanschavung – 1928 – P. 59 e seg.). E quanto à vida social e política, as conclusões de Freud são todas no sentido do autoritarismo indispensável e rigoroso. Eis o que escreve em uma se suas obras mais recentes: “Pareceria necessário uma nova regulamentação das relações humanas, de modo a fazer cessar toda insatisfação com a cultura (Freud atribui ao termo – cultura – em geral, o sentido de – sociedade), permitindo a supressão de toda coação e de toda repulsa aos instintos, de modo que todos os homens se pudessem entregar livremente à conquista dos bens da terra e ao gozo deles. Isso seria a idade de ouro: apenas é questionável se um tal estado é possível. Parece antes que toda cultura só se pode construir sobre a coação e a renúncia aos instintos - é preciso contar com um fato que, em todos os homens existem tendências destruidoras, isto é, anti-sociais e anti-culturais – de modo que é impossível evitar o domínio das massas por uma minoria, porquanto as massas são preguiçosas e imprevidentes e não gostam de renunciar aos seus instintos.” (Sig. Freud. Die Zukunfut einer Illusion – 1927, p. 9). O freudismo, portanto, termina por um moralismo individual e um autoritarismo coletivo, em formas rigorosas e necessárias. Daí o seu êxito entre os protestantes. Ora, o que hoje em dia explica o sucesso imenso do freudismo, entre as novas gerações sobretudo, é justamente o contrário. O que as novas gerações vão procurar em Freud é a libertação do moralismo e do autoritarismo. O que vale para elas, na psicanálise, é a subordinação inevitável do consciente ao subconsciente, da razão ao instinto, do homem-moral ao homem-sexual. E essa mocidade impaciente de todos os jugos, sem distinguir mais entre justos e injustos pois não aprende a distinguir, - aceita de Freud o que lhe convém e rejeita o que não lhe agrada. Exatamente como sucedeu com as gerações anteriores. Os neo-kantianos da escola de Marburg negam hoje de todo a “coisa em si”, ao passo que Kant negava apenas o conhecimento racional dela. Freud, um neo-positivista, aceita de Comte toda crítica à metafísica, mas repele a crítica à psicologia, fazendo de sua própria doutrina um puro psicologismo biologista. Os discípulos de Freud, hoje em dia, aceitam, por sua vez, o seu psicologismo, mas negam o seu moralismo e o seu autoritarismo. O juiz Lindsey, por exemplo, o homem da – “revolução da juventude nova”e do – “casamento de camaradagem”, cuja xxxi

E o mais curioso é que o mesmo já começa a suce<strong>de</strong>r a Freud. A doutrina <strong>de</strong><br />

Freud termina <strong>em</strong> um forte moralismo, nos domínios da psicologia individual, e <strong>em</strong><br />

forte autoritarismo nos domínios da psicologia social. Freud mostrou, <strong>em</strong> toda a sua<br />

doutrina, a supr<strong>em</strong>acia dos instintos, e entretanto termina s<strong>em</strong>pre por invocar a<br />

necessida<strong>de</strong> absoluta do domínio dos instintos, da Triebverzichtung, tanto na vida<br />

individual como coletiva.<br />

Não há psicanalista que não acentue esse caráter moralista da doutrina, na vida<br />

psicológica, pelo domínio da censura, que o próprio Freud acentuava tão vivamente<br />

nas suas primeiras conferências, comparando o instinto a um intruso que quisesse<br />

perturbar a ord<strong>em</strong> da conferência que fazia.<br />

Ou, como escreve um pastor protestante, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1905 é um dos mais<br />

acérrimos partidários <strong>de</strong> Freud: “<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início que o esforço psicanalítico se faz <strong>de</strong><br />

mãos dadas com preocupações éticas.” E aponta três conquistas fundamentais da<br />

psicanálise para a ética: a d<strong>em</strong>onstração da importância do inconsciente para a ética; o<br />

<strong>em</strong>prego <strong>de</strong> princípios biológico-higiênicos para a ética; e o postulado da importância<br />

individual dos preceitos éticos. (Oscar Pfister. – Psychoanalisy und Weltanschavung –<br />

1928 – P. 59 e seg.).<br />

E quanto à vida social e política, as conclusões <strong>de</strong> Freud são todas no sentido<br />

do autoritarismo indispensável e rigoroso. Eis o que escreve <strong>em</strong> uma se suas obras<br />

mais recentes: “Pareceria necessário uma nova regulamentação das relações humanas,<br />

<strong>de</strong> modo a fazer cessar toda insatisfação com a cultura (Freud atribui ao termo –<br />

cultura – <strong>em</strong> geral, o sentido <strong>de</strong> – socieda<strong>de</strong>), permitindo a supressão <strong>de</strong> toda coação e<br />

<strong>de</strong> toda repulsa aos instintos, <strong>de</strong> modo que todos os homens se pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> entregar<br />

livr<strong>em</strong>ente à conquista dos bens da terra e ao gozo <strong>de</strong>les. Isso seria a ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouro:<br />

apenas é questionável se um tal estado é possível. Parece antes que toda cultura só se<br />

po<strong>de</strong> construir sobre a coação e a renúncia aos instintos - é preciso contar com um<br />

fato que, <strong>em</strong> todos os homens exist<strong>em</strong> tendências <strong>de</strong>struidoras, isto é, anti-sociais e<br />

anti-culturais – <strong>de</strong> modo que é impossível evitar o domínio das massas por uma<br />

minoria, porquanto as massas são preguiçosas e imprevi<strong>de</strong>ntes e não gostam <strong>de</strong><br />

renunciar aos seus instintos.” (Sig. Freud. Die Zukunfut einer Illusion – 1927, p. 9).<br />

O freudismo, portanto, termina por um moralismo individual e um<br />

autoritarismo coletivo, <strong>em</strong> formas rigorosas e necessárias. Daí o seu êxito entre os<br />

protestantes. Ora, o que hoje <strong>em</strong> dia explica o sucesso imenso do freudismo, entre as<br />

novas gerações sobretudo, é justamente o contrário. O que as novas gerações vão<br />

procurar <strong>em</strong> Freud é a libertação do moralismo e do autoritarismo. O que vale para<br />

elas, na psicanálise, é a subordinação inevitável do consciente ao subconsciente, da<br />

razão ao instinto, do hom<strong>em</strong>-moral ao hom<strong>em</strong>-sexual. E essa mocida<strong>de</strong> impaciente <strong>de</strong><br />

todos os jugos, s<strong>em</strong> distinguir mais entre justos e injustos pois não apren<strong>de</strong> a<br />

distinguir, - aceita <strong>de</strong> Freud o que lhe convém e rejeita o que não lhe agrada.<br />

Exatamente como suce<strong>de</strong>u com as gerações anteriores. Os neo-kantianos da escola <strong>de</strong><br />

Marburg negam hoje <strong>de</strong> todo a “coisa <strong>em</strong> si”, ao passo que Kant negava apenas o<br />

conhecimento racional <strong>de</strong>la. Freud, um neo-positivista, aceita <strong>de</strong> Comte toda crítica à<br />

metafísica, mas repele a crítica à psicologia, fazendo <strong>de</strong> sua própria doutrina um puro<br />

psicologismo biologista.<br />

Os discípulos <strong>de</strong> Freud, hoje <strong>em</strong> dia, aceitam, por sua vez, o seu psicologismo,<br />

mas negam o seu moralismo e o seu autoritarismo. O juiz Lindsey, por ex<strong>em</strong>plo, o<br />

hom<strong>em</strong> da – “revolução da juventu<strong>de</strong> nova”e do – “casamento <strong>de</strong> camaradag<strong>em</strong>”, cuja<br />

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